Acordei o dia antes de o dia me
acordar e saí na ânsia de movimentar o mundo.
Os sonhos, da noite curta, foram
valentes e me trouxeram cenas que não consigo reproduzir. Enquanto caminho,
penso em por que sonhamos. Tento alguma lembrança de alguma explicação de algum
significado.
É bom ver o nascer do dia caminhando.
E, caminhando, vi uma criança dizendo, da calçada onde vive, a frase que me
estacionou: “Senhor, cuidado para não pisar, é minha mãe, ela não está bem”.
O senhor que andava distraído, um
pouco à minha frente, cambaleou e prosseguiu, sem nada dizer, sem nada fazer.
Bêbado de alguma desilusão, prosseguiu desequilibrado.
Olhei para o menino e quis saber. Com
a coragem de um pequeno protetor, explicou a mãe, a pobreza, a doença, o
abandono.
Morar na rua não é uma opção. É uma
ausência. De olhos. De mãos. De pensamento.
Sentei com eles e convenci uma
atitude. A mãe, entre acordada e distante, primeiro disse que dali não se
levantaria. Eu concordei e apenas pedi autorização para prosseguir com eles,
conversando. Ela fechou os olhos sem dizer. O menino respondeu pela família:
“Pode sim”, e prosseguiu: “Espera, deixa eu colocar esse papelão para o senhor
ficar mais confortável”. Me movi para cima e ele cuidou do meu espaço.
O menino se chama Rafael, como o anjo
da cura, e a mãe se chama Teresinha, como a santa que pediu a Deus que, quando
morresse, pudesse derramar sobre a terra uma chuva de pétalas de rosas.
Em frente à calçada em que estávamos,
uma grade alta protegia um roseiral. E, por trás, uma casa de gigantesco luxo.
Rafael disse da doença da mãe, “a cabeça não ajuda a melhorar o corpo”.
Perguntei se estavam com fome. Ele olhou para o longe. Imaginei todas as fomes
que eles deviam estar. Disse eu da minha fome e os convidei para comer comigo.
A padaria estava a alguns passos. Ela disse “não”. Ele disse nada.
Olhei para o menino e me vi menino,
também. Infância feliz a minha. E a dele?
A frase “cuidado para não pisar” foi
ganhando outros significados em mim. Em quem pisamos? Por que pisamos? Por que
pesamos sobre o outro? Por que desrespeitamos a humana necessidade de tratarmos
o outro com cuidado?
Levantei e encontrei na padaria o que
queria para aquele instante. Comemos os três, na calçada, o que, apenas naquele
instante, nos alimentou. E depois?
Fui com cuidado conversando. E, com
cuidado, falando da minha mãe e de algumas doenças que foram curadas quando ela
deixou. Teresinha parecia um pouco mais confiante no que eu dizia. E, algum
tempo depois, ela autorizou alguma ajuda. A Santa Casa compreendeu o seu estado
e a recebeu sem muitas interrogações. Rafael, com as mãozinhas miúdas, passava
a mão pelos cabelos da mãe.
Por uma manhã, esqueci os problemas
todos do mundo que carregava em mim. Por uma manhã, despistei os pensamentos
pequenos que nos reduzem ao egoísmo e à luta insana por desnecessárias
vitórias. Éramos nós três em uma comunhão de intenções corretas.
Alguns pensamentos tentavam adiantar
o que viria depois. O menino não estava na escola. Eles não tinham onde morar.
Ela temia os abrigos e as pessoas, já foi machucada demais pela vida. Tentei
desligar o que me roubava a preciosidade daquele momento.
Já vi muito gente na rua e tive
receios. A coragem daquele dia veio da força de um menino defendendo sua mãe. A
coragem daquele dia veio de uma cura da minha alma proporcionada por um anjo
que me permitiu voltar a prestar atenção ao que há de mais bonito no existir
humano, o exercício do cuidar.
Um texto de Gabriel Chalita
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