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domingo, 27 de janeiro de 2019

Cântico dos Cânticos



Também chamado “O Livro de Cantares”, descreve o amor e casamento de Salomão (chamado “o amado”) com uma jovem camponesa (denominada “sulamita”). Compõe-se totalmente de discursos pronunciados principalmente pela sulamita e por Salomão. Visto tratar-se de poesia oriental antiga, difere basicamente da forma como um escritor devoto da atualidade poderia apresentar as mesmas ideias básicas. Descreve a beleza do amor puro entre uma mulher e um homem, amor que se aprofunda numa devoção recíproca e imperecível. A mensagem fundamental é a pureza e o caráter sagrado do amor no casamento – mensagem muito necessária em nossos dias de tantas promessas matrimoniais quebradas e de divórcios fáceis.
Ao mesmo tempo, os Cantares de Salomão lembram-nos que o que sustenta todo o amor humano puro é o maior e mais profundo de todos os amores – o amor de Deus, que sacrificou a Seu Filho para redimir os pecadores, e do amor do Filho de Deus que sofreu e morreu por Sua “esposa”, a igreja. Cantares de Salomão não é alegoria nem tipo, mas uma parábola do amor divino que constitui o pano de fundo e a fonte de todo o verdadeiro amor humano.
O título (1:1) diz que Salomão é o autor. Isto está de acordo com o conteúdo do livro, especialmente a descrição da natureza. Até agora ninguém apresentou um caso convincente contra a paternidade literária de Salomão. Foi rei de Israel entre os anos 973 a 933 a.C., aproximadamente.

Johannes G. Vos

domingo, 20 de janeiro de 2019

Jesus Nos Cura de Nossa Cegueira



(Marcos 10:46-52)
Então chegaram a Jericó. Quando Jesus e seus discípulos, juntamente com uma grande multidão, estavam saindo da cidade, o filho de Timeu, Bartimeu, que era cego, estava sentado à beira do caminho pedindo esmolas. Quando ouviu que era Jesus de Nazaré, começou a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” Muitos o repreendiam para que ficasse quieto, mas ele gritava ainda mais: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” Jesus parou e disse: “Chamem-no”. E chamaram o cego: “Ânimo! Levante-se! Ele o está chamando”. Lançando sua capa para o lado, de um salto, pôs-se de pé e dirigiu-se a Jesus. “O que você quer que eu lhe faça?”, perguntou-lhe Jesus. O cego respondeu: “Mestre, eu quero ver!” “Vá”, disse Jesus, “a sua fé o curou”. Imediatamente ele recuperou a visão e seguia a Jesus pelo caminho.

O que podemos fazer quando a fé vai se apagando em nosso coração? É possível reagir? Podemos sair da indiferença? Marcos narra a cura do cego Bartimeu para animar seus leitores a viver um processo que possa mudar suas vidas. Não é difícil nos reconhecermos na figura de Bartimeu.
Vivemos às vezes como “cegos” sem luz para olhar a vida como Jesus olhava. Sentados, instalados numa religião convencional, sem força para seguir Seus passos. Desencaminhados, “à beira do caminho” que Jesus percorre, sem aceitá-Lo como guia de nossa vida.
O que podemos fazer? Apesar de sua cegueira, Bartimeu “fica sabendo” que por sua vida está passando Jesus. Não se podia deixar escapar a ocasião e começou a gritar: “Tem misericórdia de mim!” Esta é sempre a primeira coisa: abrir-se a qualquer chamado ou experiência que nos convida a curar a nossa vida. O grito deve ser humilde e sincero, repetido do fundo do coração; pode ser o começo de uma vida nova. Jesus não passará ao largo.
O cego continuava no chão, longe de Jesus, mas escuta atentamente o que lhe dizem seus enviados: “Ânimo! Levante-se! Ele o está chamando”. Primeiro se deixa animar, abrindo uma pequena brecha para a esperança. Depois ouve o chamado a levantar-se e reagir. Por último, já não se sente sozinho: Jesus o está chamando. Isto muda tudo.
Bartimeu dá três passos: 1 – Joga fora o manto, pois este o impede de encontrar-se com Jesus, embora ainda se movesse entre trevas. 2 – Dá, então, um salto decisivo e se aproxima de Jesus. É o que muitos de nós precisamos, ou seja, nos libertar das amarras que emperram nossa fé. 3 – Toma, por fim, uma decisão sem deixá-la para mais tarde e se coloca diante de Jesus com confiança simples e nova.
Quando Jesus lhe pergunta o que quer d’Ele, o cego não duvida. Ele sabia muito bem do que precisava: “Mestre, eu quero ver!” É o mais importante. Quando alguém começa a ver as coisas de maneira nova, sua vida se transforma. Quando uma comunidade recebe luz de Jesus, ela se converte.
Depois de vinte séculos, a maior contradição dos cristãos é pretender sê-lo sem seguir Jesus. Se aceita a religião cristã (como se poderia aceitar qualquer outra), porque dá segurança e tranquilidade diante do “desconhecido”, mas não se entra na dinâmica do seguimento fiel a Cristo. Estamos cegos e não vemos onde está o essencial da fé cristã.
O grande problema hoje em nós é a moda ou o sistema. Renunciamos a crescer como pessoas. Somos chamados a crescer. O Evangelho tem força para nos fazer viver uma vida mais intensa, verdadeira e jovem. O escritor Georges Bernanos dizia: “Sois capazes de rejuvenescer o mundo, sim ou não? O Evangelho sempre é jovem. Vós é que sois velhos”.
A civilização pós-moderna nos sobrecarrega e constrange com todo o tipo de receitas e técnicas para viver melhor, estar em forma e conseguir um bem-estar mais seguro. Mas todos nós sabemos por experiência que a vida não é algo que nos vem de fora, mas se deve alimentá-la no mais profundo de nós mesmos.
Outro erro que se comete hoje, é recolher-se em si mesmo e fechar-se nos próprios problemas sem interessar-se pelos outros. Quem permanece indiferente a tudo aquilo que não sejam suas coisas corre o risco de matar sua vida. O amor renova as pessoas; o egoísmo as faz murchar. Portanto, é bom lembrar: “Não existe Igreja de Jesus sem ouvir os que sofrem”.

Um texto do Padre Ari Antonio da Silva

domingo, 13 de janeiro de 2019

Eclesiastes



A vaidade é a chave deste livro.
Quem é o Eclesiastes? A palavra significa “homem de assembleia”, podendo ser o homem que convoca uma assembleia religiosa (Números 10:7), ou aquele que é seu porta-voz ou pregador. Nosso porta-voz não é um sacerdote que fizesse uso da lei, nem um profeta que fizesse uso da palavra, mas um sábio que fazia uso do conselho (Jeremias 18:18), grande parte de cuja obra se assemelha ao livro dos Provérbios.
De 1:1 se deduz geralmente que se trata de Salomão, o primeiro dos sábios de Israel (12:9-11; também I Reis 3:12; 4:29-34); pelo menos, pensava-se que parte do livro refletia as experiências do sábio.
Entretanto, poderíamos perguntar se Salomão, o terceiro rei de Israel, empregou alguma vez em sua história o tempo gramatical pretérito para dizer: “Fui rei sobre Israel em Jerusalém” (1:12). Teríamos confessado, como ele o fez, que a sabedoria “ainda estava longe de mim” (7:23)? Quando este pregador escreveu? Evidentemente, quando a nação de Israel vivia angustiada sob o jugo do opressor (possivelmente a Pérsia, entre os anos 444 e 331 a.C.) Onde? Perto da casa de Deus (5:1). Os conhecimentos do mundo demonstrados no livro poderiam ter sido adquiridos ali mesmo em Jerusalém.
A quem se dirige o livro? Embora escrito em hebraico, os traços distintivos de Israel são poucos. Nunca se emprega o nome de Deus associado com o concerto ou aliança; Israel é mencionado uma única vez. O autor fala aos filhos dos homens e, por fim, à humanidade toda. Apontando para a estultícia natural do homem e sua ignorância, prepara o caminho para a sabedoria e para a luz do evangelho.
Por que este livro consta do cânon? Os rabinos punham em dúvida a consequência do escritor, porém o livro já figurava em suas Escrituras. Não vemos neste livro um otimismo cego: existem muitíssimos problemas sérios da vida para justificar otimismo. Não vemos aqui, tampouco, um pessimismo cínico, visto que o autor é crente no Deus da justiça (8:12-13). Temos aqui um penetrante realismo que faz frente à alegria e à fúria, aos triunfos e às derrotas, um jogo de luz e sombras, e termina afirmando que tudo é vaidade (1:2; 12:8); contudo, paradoxalmente, a vida toda do homem deve reverenciar e obedecer a Deus, uma vez que é a Ele que finalmente prestaremos contas (12:13-14).

W. Gordon Brown

domingo, 6 de janeiro de 2019

Vozes Cantantes, Vozes Ignoradas



As Cantigas de Ternos de Reis de Florianópolis/SC sob a perspectiva dos estudos subalternos

Resumo: Este ensaio busca dar visibilidade às comunidades ribeirinhas de Florianópolis, Santa Catarina, onde se pratica o Terno de Reis. Partindo do escopo teórico de Spyvak (1988) e Boaventura de Souza Santos (2012), procuramos problematizar o porquê deste tipo de saber e manifestação cultural permanecerem sempre à margem da hegemonia artística na sociedade capitalista atual.
Palavras-chave: Terno de Reis. Estudos Subalternos. Sociedade Capitalista. Marginalização. Cultura Popular.
Abstract: This paper aims to give a view to the fishermen’s comunities from Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, where they play as Christmas Singers. To do so, the author uses such theoric approaches as the studies of Spyvak (1988) and Boaventura de Souza Santos (2012), searching for the reasons why this kind of knowledge and cultural expression does not find place or recognition in the hegemonic capitalist society of nowadays.
Keywords: Christmas Singers. Subaltern Studies. Capitalist Society. Marginalization. Popular Culture.

1 – INTRODUÇÃO

Como se sabe, o primeiro imperialismo foi o Imperialismo Ibérico (SANTOS, 2012), de onde surgiu também o primeiro conceito de Modernidade. A expansão marítima de Portugal e Espanha em busca de uma rota para as Índias, resultou numa nova geografia do mundo, na colonização massiva de terras distantes da Europa e no surgimento de uma visão eurocêntrica, que opunha europeus (civilizados) a não-europeus (bárbaros).
Apesar dos séculos que nos distanciam das primeiras rotas marítimas e das primeiras expedições e descobertas dos povos ibéricos, ainda vivemos num mundo calcado histórica-geográfica-politicamente na visão eu x outro/Norte x Sul/europeus x não-europeus. O Brasil não escapa a essa visão de território colonizado, de Metrópole versus Colônia. A própria história do país, sua cultura, seus costumes, são narrados do ponto de vista do colonizador, do imigrante europeu, jamais sob o ponto de vista dos povos autóctones.
Nosso objeto de estudo, as comunidades ribeirinhas de Florianópolis, Santa Catarina, onde se cultua a tradição das cantigas de ternos de reis, é um exemplo desse saber e desse povo que, 500 anos depois da descoberta do Brasil, permanece à margem da globalização, à margem da hegemonia da indústria cultural de massas, à margem de políticas públicas, mas ainda assim permanece como baluarte da cultura, da fé e dos costumes mais tradicionais da ilha.

1.1 – Origens e cor local dos Ternos de Reis

Historicamente falando, a tradição das cantigas de ternos de reis em Florianópolis, se inicia com a chegada de casais açorianos à Vila de Nossa Senhora do Desterro (como era conhecida a cidade), a partir de 1748, (de acordo com as informações do eminente professor Nereu do Vale Pereira em entrevista concedida à esta pesquisadora no Museu do Ribeirão da Ilha em janeiro de 2012, e que também podem ser encontradas em seu livro “Contributo Açoriano ao Mosaico Cultural Catarinense”). Sendo assim, a tradição de cantar em casas da vizinhança, de familiares e de amigos, canções que falam do nascimento de Jesus Cristo e da visita dos três Reis Magos, é um costume que tem nesses casais de açorianos emigrados, a sua origem.
Porém houve todo um ajuste dessas tradições portuguesas às terras catarinenses: em primeiro lugar, houve a introdução de um instrumento típico, a gaita, sem a qual os ternos de reis se veem desprovidos de sua “alma”. Em segundo lugar, houve a inclusão de vozes femininas numa tradição eminentemente masculina (na Espanha e em Portugal apenas rapazes podiam apresentar-se). Em terceiro lugar, houve uma maior flexibilidade no número de componentes do grupo: de três (terno), passou-se até 8, 10, 12, 16 componentes, criando verdadeiros “coros” sempre dirigidos por um “Mestre”. Em quarto lugar, os ternos de reis, apesar de serem uma tradição familiar e comunitária, tornaram-se ao longo da década de 2000 uma referência como espetáculos populares, desde que a Fundação Catarinense de Folclore Franklin Cascaes, passou a promover encontros desses ternos na praça da Matriz, em Florianópolis, na data de 6 de janeiro.

1.2 – Os Ternos de Reis sob a perspectiva dos Estudos Subalternos

No entanto, apesar de sua capital importância na manutenção da identidade ilhoa, pouco ou nada se sabe dessas vozes que cantam canções herdadas há tantos séculos. A ignorância frente este tipo de cultura e conhecimento tem uma explicação. Segundo Spivak,
o subtexto da narrativa palimpséstica do Imperialismo pode ser reconhecido como o “conhecimento subjugado”, isto é, “uma grande parte de conhecimentos que vêm sendo desqualificados ou tidos como inadequados por serem insuficientemente elaborados: conhecimentos ingênuos, localizados abaixo da hierarquia que requer nível de cognição e cientificidade”. (FOUCAULT apud SPIVAK, 1988, p. 25).
Há, outrossim, toda uma poética por trás de um saber aparentemente “ingênuo” e “popular”, como é o caso das cantigas de ternos de reis. Podemos auferir a este tipo de expressão folclórica, valores que vêm da mais alta tradição da poesia, desde os Aedos na Grécia até os Troubadours na França Provençal. Como aqueles poetas, estes cantores também formulam versos improvisados, rimas, acompanhados de músicas. Citando Doralécio Soares, temos o terno de reis de Itacorubi, por exemplo, integrado pelos senhores Agapito, Campolino, Vadinho e Arno, sendo o chamador o Sr. Estevão. Nas recolhas de Soares, podemos ver nitidamente a questão poética presente. A seguir transcrevemos um trecho dos versos cantados por eles:
Meu senhor estou agora
Debaixo do seu beirado
Mande nós entrar pra dentro
Do sereno estamos molhado (SOARES, 2002, p. 41)
Observe-se que apesar da linguagem ser “popular”, utilizando muitas vezes formas gramaticais e sintáticas diferentes das da norma culta, (“estamos molhado/mande nós entrar pra dentro”), há sempre rimas no segundo e quarto versos das estrofes cantadas (beirado/ molhado). Além disso, há a construção de versos com palavras que possuem sonoridade parecida, assim, há uma ressonância de letras e sons já na primeira estrofe da canção: (S –  senhor/seu/sereno) (M –  meu/mande/molhado) (D/B – debaixo/beirado/do).
Podemos também observar na primeira estrofe dos estribilhos a tradição da repetição poética, assim, através de palavras repetidas (Nasceu/Ramo/Flor/Maria), temos a seguinte construção de rimas e versos:
Da terra nasceu o ramo
Do ramo nasceu a flor
Da flor nasceu Maria
De Maria o Redentor (SOARES, 2002, p. 42).
Essa linguagem aparentemente “popular” mostra-se, ao contrário do que se pensa comumente, bastante erudita para os dias atuais, revelando a herança açoriana nas expressões que seguem:
Aqui estou eu em vossa porta
Como feixinho de lenha
Esperando a resposta
Que de vossa boca venha (SOARES, 2002, p. 42). (grifos nossos)
Repare-se na construção sintática, com o verbo ao final da frase (venha), as expressões lusas típicas do tratamento formal (vós, vossa) e da cultura portuguesa (feixinho de lenha).
Para além de tudo isto, ainda temos toda uma conotação simbólica expressa nas canções: essa conotação inclui uma fórmula/conceito de Santidade = Nobreza. Conceito este, advindo do modus vivendi dos portugueses e de sua ligação com a religião cristã. Portanto, quando a acolhida é favorável, os cantores assinalam:
Porta aberta, luz acesa
É sinal de alegria
Mande entrar os Santos Reis
Com sua nobre família (SOARES, 2002, p. 42).
Nesta simbologia, os cantores tomamo lugar dos três Reis Magos e a família visitada ocupa o lugar da família de Jesus. Há assim, uma transposição do real para o imaginário, do cotidiano para uma espécie de “Ritual Performático” (SCHECHNER, 2012) onde todos participam e todos se veem modificados temporariamente pela presença do Sagrado em suas vidas. Desta forma, os cantores de ternos de reis têm um duplo papel no cotidiano de suas comunidades: por um lado, são eles, os “arautos do sagrado”, que levam a Boa Nova aos lares da comunidade e santificam as casas e as famílias visitadas; por outro lado, eles constituem uma espécie de “célula agregadora” da sociedade, unindo vizinhos, parentes e amigos através das cantigas de ternos de reis e seu ritual.
Se essas práticas são tão salutares na sociedade, a pergunta que fica é: Por que são tão desconhecidas do grande público? Por que somente os moradores de Florianópolis e arredores têm noção do que sejam? Talvez a resposta esteja em que existe toda uma valorização do saber científico, mas não dos saberes populares. As vozes cantantes de Itacorubi, Ribeirão da Ilha, Palhoça, entre tantos outros distritos, são vozes ignoradas pelo sistema capitalista. De acordo com Boaventura de Souza Santos, deveria existir uma Epistemologia do Sul,
por epistemologia do Sul quero dizer o encontro de novos processos de produção e valorização de saberes válidos, sejam científicos ou não-científicos, e de novas relações entre diferentes tipos de saberes nas bases das práticas de classes e grupos sociais que tem sofrido de forma sistemática a opressão e a discriminação causada pelo capitalismo e pelo colonialismo.(SANTOS, 2012, p.51).
Podemos afirmar, assim, que a poética dos ternos de reis só não é mais (re)conhecida, por ser uma “canção/poesia do povo” ou como quer Spivak ( 1988), “dos subalternos.”
Em que momento o saber popular e o conhecimento intuitivo de poesia tornam-se ignorados? De acordo com Santos, existe uma ecologia de saberes, que implica mais de uma forma de conhecimento. “[...] Epistemologicamente a sociedade capitalista moderna é caracterizada pelo fato de que favorece as práticas em que o conhecimento científico prevalece”. (SANTOS, 2012, p. 57).
Para o sociólogo luso, a ecologia de saberes implicaria não no descrédito do saber científico, mas na inclusão de outros saberes, não científicos e tão válidos quanto. Seria uma forma de angariar saberes de maneira contra-hegemônica, garantindo credibilidade aos saberes não científicos. (SANTOS, 2012, p. 57).
Talvez, esta seja a hora de fazermos a mesma pergunta de Spivak: Pode o subalterno falar? Segundo a autora indiana, as minorias e os desfavorecidos, ainda são maioria silenciosa. Neste sentido, não é de surpreender que os ternos de reis, expressão desta “maioria silenciosa” permaneça ignorado. Como Santos (2012) refere, o problema não é o que o saber científico conhece, mas o que, em nome do saber científico, se ignora. Quando um determinado saber não tem uma interferência na vida prática e no meio ambiente do mundo real e objetivo, quando um saber é simbólico e intuitivo, ele é meramente descartado. A sociedade capitalista é uma sociedade de resultados, não de buscas. Nada há mais anticapitalista do que a arte pela arte, a arte sem utilidade alguma, apenas pelo prazer de existir, de tocar a alma dos homens. E o que é a poesia? E o que são as canções de ternos de reis, senão isso: arte? E para além da fruição estética, uma ligação com o sagrado?  Num mundo mecanicista, cientificista, materialista, pouco espaço há para a poesia, a sabedoria popular, o sagrado: os três eixos constituintes dos ternos de reis. Além disso, esta expressão da cultura e do folclore catarinense, vai muito mais fundo no inconsciente coletivo (JUNG, 2012) do que poderíamos pressupor. A seguir, analisaremos o impacto dessa manifestação folclórica e dessas cantigas na vida moderna, seja através da questão mitológica, religiosa ou de fundo psicanalítico.

1.3 – Mitos e arquétipos

         “O mito é o nada que é tudo”, já dizia o poeta Fernando Pessoa em seu livro mitológico-poético, Mensagem. Esse nada do mito, descrito pelo bardo português, bem pode ser a sua significação na sociedade atual, uma sociedade amplamente massificada e “dessacralizada” ou “profana”, como quer Mircea Eliade (2001, p. 19-21). Porém, mesmo vivendo na Era da Ciência e da Razão, o homem, este ser em boa parte “irracional”, ainda busca por transcendência em seu dia a dia, ainda anseia por mitos (mesmo que estes sejam construídos pela indústria cultural de massas, vide Marylin Monroe, Maddonna, Michael Jackson). Enfim, o “animal moral”, como foi descrito o ser humano por Robert Wright em seu livro homônimo, é aquele que, a despeito de toda e qualquer racionalização da realidade, ainda busca uma via espiritual para explicar as lacunas deixadas pela ciência e pelo mundo tecnológico da informação.
          O mito é, no sentido empregado nesta tese,  mais que uma transfiguração do real, ele é uma necessidade humana de transcendência. Daí decorrerem tantas imagens e “mitologias” mesmo na vida moderna. Sem nos alongarmos muito, temos os Mitos Geracionais e Cinematográficos como James Dean, Marlon Brando, Elisabeth Taylor, (1950-1960); Mitos da Cultura Pop como os Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin (1960-1970); Mitos Revolucionários como Che Guevara e Fidel Castro na América Latina (1960-2000); Mitos Literários e Geracionais como os Beatniks, Charles Bukowski, J. D. Salinger e, mais recentemente, Paulo Coelho e J. K. Rowling (1950-2000), entre tantos outros exemplos (JAHN, 2015). A verdade é que o imaginário humano continua sua incessante revolução, seu incessante aperfeiçoamento, mesmo quando existe de fato uma revolução tecnológica em andamento. Assim é que Joseph Campbell, em seus ensaios sobre a Mitologia da Vida Moderna (2010), pôde comprovar a existência, na atualidade, dos anseios do homem ancestral que se fez contemporâneo. Não é de estranhar que o leitor pergunte: Por que tais anseios permanecem ainda hoje, neste tempo e espaço cosmopolita e profano, na Era da Tecnologia, da Informação e das descobertas sobre o DNA? Uma possível resposta a tais questionamentos será a seguinte: Todos nós, homens da Era da Informação, tivemos uma origem comum e ancestral que, de quando em quando, é resgatada através de rituais, músicas, cantos, danças, sem que nós, cidadãos das metrópoles, tenhamos plena consciência do que estamos fazendo e resgatando.
          Esta tese tem por objetivo lançar luz às canções, danças e festas aparentemente cotidianas de nossas urbes que são na realidade o ponto de contato com uma verdade maior, com a nossa porção de transcendência, com o nosso lado mítico e místico que trazemos desde a pré-história, desde o primeiro xamã e o primeiro ritual comunitário no interior de uma caverna. Assim, o mito é aquilo que resgata nossas origens. De acordo com o professor Karl Kerényi, “Origem” tem pelo menos dois significados na mitologia.
Enquanto conteúdo de uma narrativa, de um mitologema, é fundamentação; como conteúdo de um ato, é fundação. Nos dois casos, significa um recolocar-se do ser humano em sua própria origem e, desse modo, o aparecimento do elemento original alcançável pelo ser humano, na forma de figuras originais, mitologemas originais e cerimônias originais. Todas as três formas de manifestação podem ser os modos de manifestar o mesmo elemento já alcançado pelo ser humano, a mesma ideia mitológica (JUNG  e KERÉNYI e  2011, p. 30).
          Seguindo o pensamento de Kerényi, podemos dizer que o mito é uma verdade ancestral fundacional de nossa humanidade. Nossa origem e nossa estrutura básica fundante de quem somos desde tempos imemoriais até os dias atuais. Relendo Pessoa, o mito é nosso nada e nosso tudo – começo e fim de nossa identidade tribal, gregária e humana. Assim, analisaremos a seguir como se formaram os mitos cristãos, por que permaneceram tanto tempo no imaginário coletivo e quais suas funções no mundo atual, em especial nas comunidades em que estivemos realizando nossa pesquisa de doutorado.

1.4 – Os arquétipos do inconsciente coletivo – uma primeira abordagem

          Em nossos estudos sobre as funções que teriam as imagens da Virgem Maria, de Jesus Menino e dos Reis Magos na mitologia cristã, deparamo-nos com alguns conceitos fundamentais que seriam uma tentativa de explicar a permanência dessas figuras no imaginário coletivo durante milênios. Mesmo adentrando a era da ciência e da tecnologia, o homem contemporâneo é tributário dos mitos e do “pensamento mágico”. Eis a questão fulcral que inquieta cineastas, artistas e pensadores de nossa época: “Como pode o homem atual submeter-se a ideias religiosas milenares?” A resposta a esta questão é complexa e tem múltiplos vieses, por isso, trataremos de responder em parte por meio de teorias da psicanálise, ciência relativamente nova e ainda em fase de experimentação.
          De acordo com Sigmund Freud, criador da psicanálise, o ser humano viveria entre dois polos complementares de existência: o polo dos conteúdos que ele acessa ao longo do dia e sobre os quais tem absoluta consciência e controle (o consciente); e o seu polo oposto, ou seja, os conteúdos reprimidos, recalcados ou esquecidos que costumam se revelar nos sonhos, sobre os quais o homem não tem nenhum controle (o inconsciente). “Assim, segundo Freud, o inconsciente é de natureza exclusivamente pessoal, embora ele tenha chegado a discernir as formas de pensamento arcaico-mitológicas do inconsciente.” (JUNG, 2012, p. 11). No entanto, para o psicanalista Carl Gustav Jung, discípulo de Freud e seu principal contestador, haveria dois tipos de inconsciente com duas funções diversas:
1) O inconsciente pessoal, com conteúdos que ele chamará de complexos de tonalidade emocional e que se revelam nos sonhos e na livre associação de ideias do indivíduo; 2) e, mais abaixo, repousando numa camada mais profunda da psique humana, estaria o Inconsciente Coletivo, cuja origem já não remonta mais à experiências ou aquisições pessoais, mas, sim, teria uma natureza universal, com conteúdos e modos de comportamento idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um substrato psíquico comum de natureza suprapessoal que existe em cada indivíduo (JUNG, 2012, p. 12).
          Os conteúdos desse Inconsciente Coletivo são chamados de “arquétipos”. A palavra Archetypus já se encontra em Filo Judeu como referência à imagem de Deus no homem (JUNG, 2012, p. 13).  Esta mesma palavra no contexto grego equivale ao Ethos platônico, ou seja, uma representação do Ideal de Deus através da Arte humana. A arte e seus símbolos, a mitologia e suas narrativas e heróis seriam uma “Representação Coletiva” da cosmovisão primitiva ou arcaica. O significado do termo Archetypus fica, sem dúvida, mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e o conto de fadas. O fato de que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma, foi negado de modo absoluto até nossos dias:  “Todos os acontecimentos mitologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc., não são, de modo algum, alegorias dessas experiências objetivas, mas, sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através da projeção, isto é, do espelhamento nos fenômenos da natureza” (JUNG, 2012, p. 13-14).
          Sendo assim, as religiões do mundo se valeriam de imagens arquetípicas e de palavras sagradas para poder alcançar a camada mais profunda da alma humana e poder representar o divino para o homem comum. De acordo com Jung, essas religiões seriam depositárias de uma sabedoria revelada, que exprime “os segredos da alma em imagens magníficas”.  Desta forma, pode-se dizer que “quanto mais bela, mais sublime e abrangente se tornou a imagem transmitida pela tradição, tanto mais afastada da experiência individual” (JUNG, 2012, p. 16).
          As obras de arte religiosas estariam, nessa perspectiva, eivadas de símbolos que vão muito além das aparências. A mãe divina, virginal; a criança divina que realiza milagres; os sinais do nascimento de um messias; os reis magos, profetas de um porvir; seriam todos arquétipos e construções mitológicas, simbólicas, representações do imaginário coletivo, muito além de qualquer conteúdo histórico, documental, científico. Esses deuses e santos cristãos são a essência da alma ocidental, são a ligação entre o homem transitório, vulnerável e sua porção eterna, transcendente, imutável. O homem liga-se a Deus, não só por intermédio de outros homens, mas também pela via dos símbolos, dos mitos e heróis. E qual não é a trajetória de Cristo, desde antes de seu nascimento até após sua morte trágica, senão a trajetória do herói divino, que, sendo o “filho de Deus”, nasce, morre e ressuscita, levando a humanidade a um questionamento metafísico: se Deus pode consubstanciar-se num homem, então, por analogia, todos os homens também são “filhos de Deus”. E se nem mesmo a morte física pode acabar com a obra e o espírito de um Avatar, então, apesar das mudanças inevitáveis, o universo é uma força eterna e autorreguladora, capaz de criar vida depois da vida.
          Para o homem arcaico, possuído de símbolos e mitos, o mundo não seria um caos inexplicável, mas, antes, uma Ordem Cósmica, um ir e vir no oceano da existência, início e fim de ciclos – ad infinitum – dentro de um processo maior de evolução da consciência humana. A arte, repositório desse imaginário transcendente, seria então a ponte, a ligação entre o homem e Deus. A música, a poesia, os versos improvisados mnemonicamente, artes da Grécia e sua tradição oral, seriam então as molas propulsoras de toda uma gama de manifestações artísticas que, partindo das narrativas cristãs, iriam se consolidar como forma de expressão dos arquétipos fundantes da Civilização Lusitana e, mais tarde, da Brasileira.

1.5 – O arquétipo de anima e da mãe divina

          De acordo com Jung (2012, p. 54) o ser humano seria constituído de duas dimensões: uma dimensão material, palpável, auferida pelos cinco sentidos, estudada pela ciência dos átomos e da medicina (ideias essas, repare-se bem, do início do século XX ); e uma segunda dimensão cujas características seriam opostas, ou seja, uma parte do ser humano que é etérea, impalpável, simbólica e que é constituída principalmente por imagens, ideias platônicas e arquétipos, cujo papel seria o de ligar o homem à sua essência. Essa dimensão incomensurável, invisível e hipotética do ser humano é conhecida como alma pela Igreja Católica e Anima por Jung, sendo que entre ambos os conceitos há uma larga diferença. A Anima faria parte do homem tanto quanto seus pulmões ou coração, com a diferença de que os órgãos são formados por células que se dividem e a Anima seria de natureza indivisível. A Anima caracteriza-se pela oposição à ideia de “medida”, ela seria o “não mensurável” da vida humana.
          Note-se que estas ideias de Jung irão coincidir em parte com os estudos de física quântica de Einstein, que ficará famoso pela fórmula em que prova que a matéria e a energia são uma mesma coisa, com o diferencial de que a matéria seria uma forma mais densa de energia, enquanto a luz seria uma forma menos densa da mesma energia. A diferença entre ambos os cientistas é que, para Einstein, matéria e energia seriam uma mesma coisa e para Jung há uma separação (pelo menos a nível didático, ao expor sua teoria) entre corpo físico e Anima.
          Anima seria também uma espécie de repositório de imagens e impressões que levariam o homem de encontro ao transcendente. Sabe-se que desde a Pré-História a necessidade de transcendência acompanha a humanidade. Essa necessidade, de acordo com Jung (2012, p. 56) faria parte de uma espécie de Ethos primordial, ou seja, dos valores que, desde as sociedades mais arcaicas até o século XXI, seriam o “norte” e o “coração” do homem em busca por si mesmo.
          Na tentativa de encontrar-se, o homem acabou criando uma série de imagens primordiais que explicassem o mistério da vida; entre estas imagens, a que estudaremos agora, da Deusa-Mãe. Segundo Jung (2012) e Campbell (2008), o milagre da gestação feminina não raro deu lugar a analogias e mitos de gestação da própria natureza. Mitos como o de Deméter, deusa da agricultura; e Perséfone, deusa da primavera, que é raptada e levada ao mundo subterrâneo durante os meses de inverno e, ao retornar ao regaço de sua mãe e ao convívio dos homens, enche a terra de flores e frutos. Podemos constatar em ambas as deusas a representação arquetípica da Grande Mãe, da Deusa , aquela que gera a vida, antecessoras no tempo do culto da Mãe de Deus, Virgem Maria. Há, portanto, uma série de estudos arqueológicos, históricos e antropológicos, segundo os quais todo um panteão de deusas pagãs e orientais daria lugar a uma única imagem plasmada e aceita da Deusa-Mãe, segundo o cristianismo. Essa seria a imagem de Nossa Senhora, Virgem Maria.
          A Mãe de Deus, ou de Jesus, é, segundo a tradição oriental e pagã, uma virgem. A concepção divina é um mito oriental que se arrasta há pelo menos cinco mil anos antes da Era Cristã. Maria é, dessa forma, tributária de outras mulheres, mães de avatares, como a mãe de Krishna e a mãe de Buda. Como mãe de uma criança divina, Maria também sofre o mesmo tipo de perseguição política que a mãe de Krishna. Ambas são obrigadas a esconder sua identidade e a identidade de seu filho. Krishna acaba sendo criado por um casal de camponeses, enquanto sua mãe foge da morte. Jesus nasce no exílio, vive de maneira incógnita até os 30 anos de idade, quando inicia sua pregação e seu destino de mártir. Todas essas mulheres recebem uma espécie de “sinal dos deuses”: a mãe de Krishna concebe durante uma prolongada meditação na Floresta; a mãe de Buda sonha que um elefante sai de seus flancos (o elefante era considerado uma espécie de deus na Índia daqueles tempos); a mãe de Jesus recebe a visita do Anjo Gabriel.
          De acordo com Campbell, o arquétipo da Virgem Maria, remontaria a pelo menos cinco mil e quinhentos anos antes da Era Cristã, quando existiam representações da Deusa-mãe com as mesmas características antropomórficas e simbólicas (CAMPBELL, 2008, p. 46).
          No caso da simbologia da Virgem Maria e na de suas antecessoras, podemos destacar pelo menos estes aspectos: fertilidade, bondade, compaixão, amorosidade, acolhimento, abundância, plenitude, manutenção da vida. E, no caso da criança recém-nascida, o aconchego e a harmonia que justificam a maternidade idealizada das mulheres até os dias atuais. Maria inicia o paradigma da maternidade na Cultura Ocidental. Esse símbolo emblemático da maternidade e da pureza virginal foi o epicentro do imaginário medieval cristão quando a Igreja assumiu publicamente a importância dessa figura feminina. Maria, mãe de Jesus/Mater Dei, acabou fazendo frente e assimilando para si a devoção que as mulheres em especial tinham pelas deusas pagãs, advindas de culturas milenares (como Grécia e Roma) e que pertenciam ao panteão dos deuses ocidentais até o advento do Cristianismo.
          Sob essa perspectiva, a Igreja Católica teve um papel não só de “apagamento” das culturas locais como também exerceu uma espécie de “mecanismo regulador e moralizante” da sociedade de então. Diante da extrema violência e desprezo com que eram tratadas as mulheres, o advento de Maria, Mãe de Deus, fez com que raptos, abusos, ligações incestuosas, não tivessem mais lugar tanto no imaginário europeu, quanto nas atitudes cotidianas de reis e vassalos. A Igreja foi uma instituição civilizadora neste sentido, pois colocou regras morais e éticas onde elas não existiam, ou eram falhas. Assim, Maria surgiu como uma figura relevante e simbólica que deu ao universo feminino os status de “Mãe”, “Virgem” e também de “Esposa”.
          De acordo com Mircea Eliade, em seu Dicionário das Religiões,
Maria permaneceu virgo in partu et post partum, ou seja, semper virgo. No conjunto das personagens da trama cristã primordial, ela vai acabar assumindo um papel cada vez mais sobrenatural. Assim, o II Concílio de Nicéia (787) situa-a acima dos santos, aos quais só se reserva a reverência (douleia), enquanto a Maria se deve a super-reverência (hyperdouleia). Ela se torna uma personagem da família divina, a Mãe de Deus. [...]. Para além de ser maria in caelis adsumpta; ela adquire também, de acordo com os franciscanos, as características de Mater ecclesiae, mediatrix et intercessor pelo gênero humano junto a Deus (ELIADE e IOAN, 2009, p. 123).
          Portanto, Maria adquiriu inúmeras funções: mediadora e intercessora entre a humanidade e Deus, Mãe da Igreja e Mãe de Cristo. Essa figura emblemática, trazida a lume pelos evangelhos e pelo Concílio de Nicéia, elevou as mulheres a um patamar divino e trouxe para dentro de uma sociedade que tinha muitas guerras e poucas regras, todo um comportamento e uma visão de mundo que mudariam estruturalmente as relações sociais da época. Desta maneira, surgiu o sacramento do casamento, a exigência da virgindade da esposa, o batismo dos filhos gerados na relação homem-mulher, marido-esposa, enfim, toda uma série de regras que traziam mais ordem e constituíram a base da família ocidental judaico-cristã. Assim, os preceitos morais e éticos do Cristianismo formaram o substrato de uma nova civilização, que viria a tomar conta da Europa e depois de outros continentes, entre eles, América e África. Sua força era tal que Maria multiplicou-se em inúmeras imagens, cada uma de acordo com a cultura e o lugar de onde provinha. Assim, surgiram, ao longo dos tempos, as mais variadas representações da Virgem Maria, ou Nossa Senhora, entre as quais figuram, por exemplo: Nossa Senhora do Menino Jesus de Praga; Nossa Senhora de Lourdes; Nossa Senhora de Fátima; Nossa Senhora do Pilar; Nossa Senhora Aparecida; Nossa Senhora de Guadalupe; Nossa Senhora de Caravaggio, entre outras.
          Em sua missão de criar uma sociedade mais regrada, a Igreja trouxe novos modelos de família: a família divina, o pai, a mãe, o filho, e o Espírito Santo. Nessa nova célula social, Cristo e Maria tiveram funções relevantes que serviram de modelo à humanidade. Maria, a Mãe de Deus, tornou-se o núcleo ao redor do qual girava o ambiente familiar e doméstico. Dessa forma, as mulheres apropriaram-se da identidade de “Mãe”, mais adiante de “Esposa”, e deram vazão aos seus anseios mais antigos. A mulher passou a ser não só o repositório do milagre divino, como também a principal transmissora das tradições familiares e dos valores de seu tempo. Cristo, a criança divina, representava, ao mesmo tempo, o milagre da vida e a superação de paradigmas que já não serviriam mais à humanidade, criando, assim, uma nova lei: a lei do amor ao próximo.
          Estas duas figuras paradigmáticas, a Mãe Divina e a Criança Divina ou Filho de Deus, trouxeram para a Europa, e mais tarde para as Américas, um novo olhar sobre a família e o papel do indivíduo na sociedade. Ao optar pelos excluídos, pelos enfermos, pelos pobres e oprimidos, Jesus revolucionou as estruturas sociais não só de seu tempo, mas do porvir. O sentido de justiça divina e de caridade se modificou a partir da sua passagem pela Terra. Jesus pregou a justiça através do amor e da partilha, ao passo que o antigo testamento pregava a justiça por meio de vingança (Lei de Talião – olho por olho, dente por dente). Sua compaixão foi o que mudou um mundo regido pelo medo e pela violência. Jesus representou o emergir de um novo paradigma e de um novo estilo de comportamento: a tolerância com o diferente, a superação do ódio e das inimizades, a benevolência com os mais fracos, a capacidade de doar-se sem pedir nada em troca, a capacidade de não julgar o outro, sem olhar antes para si próprio. Enfim, Jesus foi um Mestre no mais amplo e verdadeiro sentido do termo. Mestre de si mesmo, Mestre de seu povo. Eis porque sua figura é até hoje reverenciada, cantada, versejada em poemas populares, louvada das mais diversas formas, servindo de modelo das mais belas obras de arte sacra.
          Além de todos estes aspectos elencados acima, podemos dizer também que Jesus e Maria, por fazerem parte de um panteão sagrado, representam, em última instância, o lado transcendente da humanidade. Se olharmos de forma cronológica e mitológica para nossa história, veremos que o homem emergiu do tempo e espaço sagrados para o tempo e espaço profanos ao longo dos últimos séculos. Houve, assim, uma espécie de dessacralização da realidade, da vida cotidiana, o que trouxe inúmeras angústias existenciais que antes não se manifestavam. Porém, para o homem religioso, Jesus e Maria continuaram a fazer sentido e a realizar milagres. Refletindo sobre qual seriam as principais diferenças entre estes dois tempos e espaços, o religioso e o profano, Mircea Eliade explica o seguinte:
Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediatamente transmuta-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para todos aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania. O homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível pois [...] para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer, ao mesmo tempo, realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profano, traduz-se muitas vezes como a oposição entre real e irreal. [...]. É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseje profundamente  ser, participar da realidade, saturar-se de poder (ELIADE, 2001, p. 18, grifos do autor).
          De acordo com o mesmo autor, sagrado e profano seriam também duas cosmovisões, duas visões de mundo e de universo, duas formas de colocar-se frente à vida, frente sua própria história, não só como indivíduo, mas também como espécie. Segundo ele:
O leitor não tardará a dar-se conta de que o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história. Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia [...], em última instância os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam [...] a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana. [...] O homem das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus, mas seu comportamento enquadra-se no comportamento geral do homem e, por conseguinte, interessa à antropologia filosófica, à fenomenologia, à psicologia (ELIADE, 2001, p. 20, grifos do autor).
          Desta maneira, podemos compreender o sentido sociológico e histórico, para além do sentido psicológico, da permanência atemporal de figuras como Maria e Cristo. Se tomarmos a história e a sociologia como bases para explicação de nossa hipótese (de que os mitos cristãos são atemporais), veremos que o homem histórico do Ocidente viveu por mais de 1500 anos dentro de uma realidade muitas vezes sagrada. Tudo na vida era regido por uma força maior, mística, sobrenatural, à qual os homens nominavam de Deus. Todos os pensamentos, desejos, ações, eram regidos pelos princípios religiosos. Deus era a medida de todas as coisas, diferente da noção grega, “o homem é a medida de todas as coisas”, que seria retomada a partir da Renascença. E, mesmo após a Renascença e sua crise de valores, a humanidade continuou dividida entre duas visões de mundo, a saber: a visão racional e dessacralizante dos Iluministas e da Ciência moderna; a visão sagrada da Igreja, e mais adiante a visão filosófica do Budismo e a nova racionalidade permeada pela Física Quântica de Einstein. Houve, desta forma, uma quebra de paradigmas: se, de um lado, o mundo se divide entre sagrado e profano, de outro lado, com as descobertas da Física Contemporânea, e também da Biologia, sagrado e profano acabam se confundindo, razão e intuição acabam fazendo parte do mesmo homem, o homem do século XXI, que é tributário de uma visão mais holística da vida.
          Neste sentido, não surpreende que, em certas comunidades, ainda hoje em dia, os arquétipos da Virgem Maria e de Cristo ainda possuam uma função simbólica e social de agregação das famílias e da vizinhança. Se, por um lado, o mundo contemporâneo oferece outros tipos de vínculos afetivos, assunto que Zygmunt Bauman (2009) irá explorar em seus estudos, que falam da “fluidez” das relações sociais, dos “vínculos líquidos”, ou seja, que se dissolvem rapidamente frente qualquer obstáculo maior; por outro lado, há toda uma reação a este tipo de comportamento, reação esta, que se mostra na perpetuação dos vínculos familiares e de compadrio em sociedades mais tradicionais e menos influenciadas pelo hiperconsumo.
          Como uma espécie de contracorrente, as comunidades ribeirinhas de Florianópolis, caracterizam-se justamente pela importância que rege os vínculos familiares, as relações de vizinhança, as relações de compadrio. Assim, a família e a comunidade são o elo entre o passado e presente. As tradições religiosas e folclóricas são perpetuadas de geração em geração, passando de pai para filho os dons, as músicas, os costumes, o linguajar. Cada geração que chega tem o papel relevante de continuar a tradição, por mais que haja inovações, seja nas cantigas, seja nos figurinos. Os mais velhos são tratados como Mestres, como aqueles que detêm a sabedoria e o conhecimento necessários para levar adiante, através de seus familiares e vizinhos, as cantorias, as performances, as brincadeiras e festejos religiosos e folclóricos.
          Há, dessa maneira, todo um respeito com os mais velhos, com seus ensinamentos, com a transmissão daquilo que conhecem. Neste tipo de grupo social é comum encontrar uma devoção fervorosa aos santos cristãos, bem como à Virgem Maria, a Jesus Cristo e aos Reis Magos. A simbologia cristã permanece viva e atuante em tais lugares. Assim, os mitos surgidos com o cristianismo (ELIADE, 2001) continuam ativos no inconsciente coletivo, ocupando na cidade e no espaço profano um lugar sagrado, um tempo fora do tempo. Além disso, os arquétipos cristãos têm um papel relevante na sociedade, qual seja:
          1. A manutenção do tecido social;
          2. A agregação da família com a comunidade;
          3. A preservação dos mitos religiosos e de tradições milenares;
          4. A revitalização do imaginário cristão;
          5. A manutenção de arquétipos importantes para o Inconsciente Coletivo;
         6. A preservação de tradições religiosas e folclóricas que infundem à comunidade, uma identidade local frente um mundo globalizado.
          Outrossim, essas comunidades de Florianópolis se organizam de tal forma que seu panorama cultural e ideológico misture ao mesmo tempo o sagrado e o profano. Assim, se nos dias comuns, o Sr. Nivaldo Rodolfo Cunha é um simples pescador, nos dias de Festa Religiosa ele é o vate, o músico responsável por entoar loas, espalhar bênçãos, improvisar versos que cantam a glória de Jesus, de Maria e dos Reis Magos. Nestes dias festivos, o Sr. Nivaldo veste a roupagem sagrada, o corpo e os gestos acompanham a voz, que soa alto e canta louvores a Deus. Neste tempo e neste espaço de performance, o tempo cronológico desaparece, dando lugar ao momento único, presente e eterno. Do mesmo modo o espaço físico se modifica, adquire novos significados: a rua já não é rua; é o espaço de passagem do cortejo, dos fiéis, da missa, dos cânticos litúrgicos. Igreja e rua já não se distinguem uma da outra, mas ocupam um mesmo lugar simbólico. A cidade volta a ser o lugar sagrado dos deuses e dos antepassados.
          Como querem Mircea Eliade e Karl Kerényi, o sagrado funda o profano e se mistura a ele. Neste sentido, as comunidades de Florianópolis estudadas em nossa pesquisa de campo, refundam a cidade em seus ritos religiosos e folclóricos. De acordo com Kerényi, “Fundam-se cidades que nas épocas das mitologias vivas pretendiam ser cópias do cosmos, do mesmo modo que os mitologemas cosmogônicos fundamentam o mundo. [...]. Essas cidades recebem como base o mesmo solo divino que o mundo. Desse modo, convertem-se naquilo que o mundo e a cidade foram de maneira similar na Antiguidade: morada dos deuses.” (JUNG e KERÉNYI, 2011, p. 24-25).
          Segundo o mesmo autor, a própria arquitetura e disposição dos pontos cardeais e entradas das cidades gregas e, mais tarde, das romanas, teria a ver com uma espécie de “Geometria Sagrada”, que seria seguida tanto pelos fundadores da polis, quanto por seus habitantes. Para ele, as cerimônias sagradas no espaço urbano, não são nada mais que uma “transformação de um conteúdo mitológico em ação” (JUNG e KERÉNYI, 2011, p. 25, grifo nosso).
          Lembrando que o mito é parte integrante e fundante da identidade coletiva, a reatualização dos mitos cristãos nas festividades catarinenses não deixa de ser uma forma de fundamentar e dar significado ao mundo circundante. Para Eliade:
O Mundo (quer dizer, o nosso mundo) é um universo no interior do qual o sagrado já se manifestou e onde, por consequência, a rotura dos níveis tornou-se possível e se pode repetir. É fácil compreender porque o momento religioso implica o momento cosmogônico: o sagrado revela a realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação – portanto, funda o mundo, no sentido de que fixa os limites e, assim, estabelece a ordem cósmica (ELIADE, 2001, p.33).
          Podemos inferir, a partir das palavras deste autor, que as festas religiosas de Florianópolis e, em especial, os rituais e cantigas de Terno de Reis, são uma forma de reorganizar a sociedade e o mundo, refundando o espaço urbano, e trazendo para a via pública, bem como para o espaço privado das casas da vizinhança, toda uma cosmogonia. Essa cosmogonia se caracteriza por uma organização cerimonial do mundo junto com seus significados mais primordiais e sagrados.
          Neste sentido, as cantigas de Ternos de Reis estão para além da música e da poesia, ocupando um lugar de transmissão de uma tradição ancestral. O motivo pelo qual essa tradição se perpetua mesmo na era da TV, do rádio, do cinema e do computador, é justamente porque ela reatualiza arquétipos que são divinos e humanos ao mesmo tempo. A Mãe de Deus, Maria, é personagem histórica e mítica ao mesmo tempo, sendo duplamente representativa: enquanto deusa ou vinculada a Deus; enquanto humana e mãe de Cristo. O mesmo ocorrendo com Jesus: de um lado, Filho de Deus; de outro, personagem histórico que revolucionou as leis dos judeus.  Se Maria é o arquétipo da Mãe, de nossa primeira imagem e vínculo afetivo; ponto fulcral da existência humana e símbolo da gestação; Cristo é o arquétipo da criança divina, Redentora, aquele que veio cumprir uma missão especial diante da humanidade. Estes dois arquétipos, da Mãe Divina e da Criança Divina, acrescidos dos Reis Magos, é que perfazem as imagens do inconsciente coletivo tanto do povo cristão, quanto dos cidadãos das comunidades ribeirinhas de Florianópolis.

2 – CONCLUSÃO

Para além de um saber não científico, as cantigas de reis também expressam uma visão de mundo que parte do sagrado para o profano. Ao consolidar-se como Festa Religiosa, a Folia de Reis, ou Terno de Reis (como é conhecido em Florianópolis), acaba por romper as margens da razão analítica, para irromper nas searas da intuição, da fé, do sagrado, e desta maneira, inaugurar um tempo mítico dentro da sua forma ritualística de performance (SCHECHNER, 2012).
Nesta cronologia e neste espaço sagrados, o homem comum encontra-se com sua própria origem e reitera seus valores mais caros. Este ensaio busca, portanto, dar voz a este homem do povo, ignorado pelo sistema capitalista, pela hegemonia da indústria cultural de massas, por um mundo cada vez mais distópico e amedrontado, cuja ciência, com todos os seus avanços, ainda não respondeu às questões mais íntimas e genuínas da humanidade.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. O Amor Líquido.São Paulo, Record, 2009.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: a mitologia ocidental. São Paulo: Palas Athena, 2008.
CAMPBELL, Joseph. Isto és Tu: redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo: Landy, 2002.
CAMPBELL, Joseph. Mitologia na Vida Moderna. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2010.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ELIADE, Mircea; IOAN P. Couliano. Dicionário das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
JAHN, Lívia Petry.  A Literatura Tradicional Oral Herdada dos Açores e Praticada no Brasil: as cantigas de ternos de reis de Florianópolis, Santa Catarina. Tese de Doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
JUNG, C.G., KERÉNYI, Karl. A Criança Divina: uma introdução à essência da mitologia. Rio de Janeiro, Vozes, 2011.
PEREIRA, Nereu do Vale. Contributo Açoriano ao Mosaico Cultural Catarinense. Florianópolis: Papa Livros, 2009.
SANTOS, Boaventura de Souza. Public Sphereand Epistemologies of The South. In: Africa Development, v. XXXVII, n. 1, p. 43-67, 2012.
SCHECHNER, Richard. Antropologia e Performance de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Litteris, 2012.
SOARES, Doralécio. Folclore Catarinense. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002.
SPYVAK, Gayatri C. Can The Subaltern Speak? In: Marxism And The Interpretation of Culture. London: Macmillan, 1988.


Um trabalho de campo e texto de Lívia Petry Jahn