Por várias
décadas uma batalha vem sendo travada no cristianismo entre aqueles que
defendem aquilo que veio a ser conhecido como “salvação pelo senhorio” de
um lado, e do outro aqueles que defendem a “livre graça” como o único terreno bíblico para se
receber vida eterna e ter certeza de salvação.
A doutrina
da necessidade de submeter-se ao senhorio de Cristo para obter a salvação final
e a entrada no céu parece ter surgido da preocupação de muitos mestres e
evangelistas cristãos nas décadas da metade do século 20, quando viram a
tendência para a licenciosidade e indiferença entre os crentes que professavam
a Cristo como Salvador. Billy Graham, A. W. Tozer e John MacArthur eram apenas
alguns dos proponentes dessa abordagem do Evangelho de Deus como sendo uma
salvação pelo senhorio.
Levantando-se
contra o aparente legalismo desta ênfase na submissão ao senhorio de Cristo
para a salvação estavam autores como Zane Hodges, que escreveu “Absolutamente Livre” em 1989 como uma resposta ao livro de
MacArthur, “O
Evangelho Segundo Jesus”, publicado um ano antes. Bob Wilkin, fundador
da Sociedade Evangélica da Graça, tem muitas vezes escrito e
ensinado contra a salvação pelo senhorio e em defesa da “Teologia
da Livre Graça”.
Embora
ambos os lados ensinem uma medida de verdade, é lamentável que tenham, pelos
seus contínuos embates retóricos, tornado implícito que suas respectivas visões
são as únicas posições doutrinárias a serem mantidas de forma inteligente e
consistente; que ou você está no campo da salvação pelo senhorio ou então
abraça a versão da oposição do ensino da livre graça.
Considerando
a enormidade do assunto, espero apresentar da forma mais concisa possível
algumas passagens para o que acredito ter se transformado numa falsa dicotomia
entre as duas ideias, cada uma aparentemente sustentada por uma reação ao outro
lado, por mais bem intencionados e piedosos que possam ser seus respectivos
protagonistas.
De um modo
geral a doutrina conhecida como “salvação pelo senhorio” promove um compromisso com Cristo,
obediência a Ele e a necessidade de perseverança em seguir a Cristo até o fim da
vida, para que uma alma seja finalmente salva. Lamentavelmente este ensinamento
obscurece a distinção entre a salvação somente pela graça e o chamado ao
discipulado, que são tão distintos um do outro quanto as parábolas que
encontramos em Lucas 14. Nos versículos 15 ao 24 Jesus ensina a abençoada
verdade do papel que tem a eleição e irresistível graça de Deus na salvação das
almas, mas nos versículos 25 ao 35 não poderia estar mais claro que o assunto
ali é o discipulado. Ignorar a óbvia mudança de assunto entre os versículos 24
e 25 seria violentar os conceitos da graça de Deus e de nosso discipulado.
Portanto,
além do fato de muitos que defendem a salvação pelo senhorio também
incidentalmente ensinarem a verdade da eleição incondicional e da segurança, e
de estarem, com razão, angustiados com a falta de um fervoroso discipulado
entre os cristãos, sua visão de salvação pelo senhorio demonstra ter pouco
fundamento à luz da Palavra de Deus.
Por outro
lado, a “teologia da livre graça” adverte
corretamente contra a falta de integridade doutrinária da visão da salvação
pelo senhorio, mas tem seus próprios excessos e pontos cegos. O mais evidente
desses pontos cegos é a alegação de um de seus principais proponentes, de que
“a fé em Cristo é uma assertiva intelectual”. Esse autor, Bob Wilkin, prossegue
na defesa de sua proposição desta maneira: “Despido de sua conotação
pejorativa, a assertiva intelectual é uma boa definição do que é a fé. Por
exemplo, você acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos
Estados Unidos? Se acredita, então você sabe o que é a fé de uma perspectiva
bíblica”.
O problema
é que tanto a premissa quanto o argumento que a sustenta dificilmente poderiam
estar mais longe da verdade daquilo que a fé realmente representa. Para os seus
simpatizantes, no Novo Testamento não existiriam exemplos de fé falsa ou
espúria, e toda ocorrência da palavra “crer” seria necessariamente um caso de
uma ou mais pessoas recebendo a vida eterna, não importando o contexto ou
comentário em torno da fé que estivesse contido no texto. Então, para esses,
Simão, o feiticeiro em Atos 8, seria um cristão genuíno desde o dia em que
ouviu o Evangelho, viu os milagres e foi batizado, apesar do julgamento
subsequente feito por Pedro de que era um que permanecia “em fel da amargura, e
em laço de iniquidade”, que não possuía “nem parte nem sorte neste ministério”
da recepção e habitação do Espírito Santo.
Além
disso, esses estariam afirmando que os muitos que acreditaram quando viram os
milagres de Jesus na festa em João 2:23-25 teriam sido necessariamente salvos
eternamente, embora o comentário divino seja de que Jesus não confiava neles.
Por que não? Porque eles não possuíam o novo nascimento e uma nova natureza, e “Ele
sabia o que havia no homem”, na carne “nascida da carne”, como explicou a
Nicodemos imediatamente após a quebra de capítulo, que é equivocadamente
colocada em João 3:1-12. Não é sem razão que esta versão da livre graça é
muitas vezes chamada de “crença fácil”, pois seu ensino sobre a natureza da fé
é falso e, em alguns aspectos, humanista.
Para que a
fé salve alguém e se conserve pelo poder de Deus até o fim, essa fé deve ser
sobrenatural em sua origem, pois a crença do homem natural no incontestável
fato da morte e ressurreição de Cristo nunca produzirá vida de nova criação,
arrependimento ou salvação do pecado. É por uma boa razão que as escrituras
falam de “fé não fingida”, bem como de “amor não fingido” (I Timóteo 1:5; II Timóteo
1:5; Romanos 12:9; I Pedro 1:22), pois não é apenas possível, mas infelizmente
muitas vezes o caso, de que o mero acreditar seja fruto de hipocrisia ou
fingimento. Um simples estudo das palavras originais confirmaria a realidade da
diferença marcante entre uma fé genuína e aquela que é fingida.
É somente
por alguém nascer de novo, pela pessoa ser vivificada (alguns chamaram de “regeneração”),
que a fé genuína é possível. Jesus se referiu a essa verdade quando disse a
Nicodemos: “Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (João
3:3). “Ver” aqui indica visão espiritual, ou fé, e deve ser distinguido da
afirmação paralela do Senhor alguns versos depois, a de que alguém que não
nasceu de novo não pode “entrar” no reino de Deus. As Escrituras nos ensinam
que o novo nascimento é a causa da vida, e seu efeito é a fé no testemunho de
Deus quanto ao Seu Filho (João 1:12-13; I João 5:1; Tiago 1:18).
O novo
nascimento é iniciado e efetuado por Deus, e o homem não é convidado a fazer
isso e nem é esperado dele que o faça. É algo parecido com o que aconteceu com
o despertar de Lázaro de entre os mortos, que foi pelo chamado soberano do
Senhor Jesus de fora do seu túmulo. A ressurreição de Lázaro foi um belo quadro
da verdade espiritual que o Senhor deu em João 5:21: “Pois, assim como o Pai
ressuscita os mortos, e os vivifica, assim também o Filho vivifica aqueles que
quer”.
Esta nova
natureza adquirida através de novo nascimento logo faz com que a alma
vivificada sinta o peso do pecado do “velho homem”, e aí o crente se arrepende,
justificando a Deus e aceitando Seu conselho contra si mesmo como sendo pecador
(Lucas 7:29-30). O “novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça
e santidade” (Efésios 4:20-24) é o que agora caracteriza a vida cristã. A
obediência divina, a perseverança nas boas obras e a conformidade com o Filho
são o que Deus, por Seu Espírito, opera em nós e espera de nós (II Coríntios
5:17; Efésios 2:10; Romanos 8:28-30; João 15:1-8).
Isso é bem
diferente da ideia de uma “salvação pelo senhorio”. Essa verdade do novo
nascimento e da nova criação também é distinta do ensinamento errado dos
promotores da “livre graça”, que diz que a fé não é mais do que o assentimento
intelectual dos fatos. Pois embora o verdadeiro crente possa lutar, fracassar e
pecar com frequência, e até definhar para uma condição de desviado, ainda
assim, graças a uma vivificação ocorrida de modo soberano, e também graças ao
subsequente selo do Espírito, ele possui o desejo e a capacidade inatos, tanto
de uma “fé não fingida” para vencer o mundo, como do “amor não fingido” por
Cristo e pelos irmãos. (I Pedro 1:22-23; I João 3:23).
Um texto de John Kulp
Nenhum comentário:
Postar um comentário