As
Cantigas de Ternos de Reis de Florianópolis/SC sob a perspectiva dos estudos subalternos
Resumo: Este ensaio busca
dar visibilidade às comunidades ribeirinhas de Florianópolis, Santa Catarina,
onde se pratica o Terno de Reis. Partindo do escopo teórico de Spyvak (1988) e
Boaventura de Souza Santos (2012), procuramos problematizar o porquê deste tipo
de saber e manifestação cultural permanecerem sempre à margem da hegemonia
artística na sociedade capitalista atual.
Palavras-chave:
Terno de Reis. Estudos Subalternos. Sociedade Capitalista. Marginalização. Cultura Popular.
Abstract: This paper aims to give a view to the fishermen’s
comunities from Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, where they play as
Christmas Singers. To do so, the author uses such theoric approaches as the
studies of Spyvak (1988) and Boaventura de Souza Santos (2012), searching for
the reasons why this kind of knowledge and cultural expression does not find
place or recognition in the hegemonic capitalist society of nowadays.
Keywords: Christmas Singers. Subaltern Studies. Capitalist
Society. Marginalization. Popular Culture.
1 – INTRODUÇÃO
Como
se sabe, o primeiro imperialismo foi o Imperialismo Ibérico (SANTOS, 2012), de
onde surgiu também o primeiro conceito de Modernidade. A expansão marítima de
Portugal e Espanha em busca de uma rota para as Índias, resultou numa nova
geografia do mundo, na colonização massiva de terras distantes da Europa e no
surgimento de uma visão eurocêntrica, que opunha europeus (civilizados) a
não-europeus (bárbaros).
Apesar
dos séculos que nos distanciam das primeiras rotas marítimas e das primeiras
expedições e descobertas dos povos ibéricos, ainda vivemos num mundo calcado
histórica-geográfica-politicamente na visão eu x outro/Norte x Sul/europeus x
não-europeus. O Brasil não escapa a essa visão de território colonizado, de
Metrópole versus Colônia. A própria história do país, sua cultura, seus
costumes, são narrados do ponto de vista do colonizador, do imigrante europeu,
jamais sob o ponto de vista dos povos autóctones.
Nosso
objeto de estudo, as comunidades ribeirinhas de Florianópolis, Santa Catarina,
onde se cultua a tradição das cantigas de ternos de reis, é um exemplo desse
saber e desse povo que, 500 anos depois da descoberta do Brasil, permanece à
margem da globalização, à margem da hegemonia da indústria cultural de massas,
à margem de políticas públicas, mas ainda assim permanece como baluarte da
cultura, da fé e dos costumes mais tradicionais da ilha.
1.1 – Origens e cor local dos Ternos de
Reis
Historicamente falando, a tradição das cantigas de ternos de
reis em Florianópolis, se inicia com a chegada de casais açorianos à Vila de
Nossa Senhora do Desterro (como era conhecida a cidade), a partir de 1748, (de
acordo com as informações do eminente professor Nereu do Vale Pereira em
entrevista concedida à esta pesquisadora no Museu do Ribeirão da Ilha em
janeiro de 2012, e que também podem ser encontradas em seu livro “Contributo
Açoriano ao Mosaico Cultural Catarinense”). Sendo assim, a tradição de cantar
em casas da vizinhança, de familiares e de amigos, canções que falam do
nascimento de Jesus Cristo e da visita dos três Reis Magos, é um costume que
tem nesses casais de açorianos emigrados, a sua origem.
Porém houve todo um ajuste dessas tradições portuguesas às
terras catarinenses: em primeiro lugar, houve a introdução de um instrumento
típico, a gaita, sem a qual os ternos de reis se veem desprovidos de sua
“alma”. Em segundo lugar, houve a inclusão de vozes femininas numa tradição
eminentemente masculina (na Espanha e em Portugal apenas rapazes podiam
apresentar-se). Em terceiro lugar, houve uma maior flexibilidade no número de
componentes do grupo: de três (terno), passou-se até 8, 10, 12, 16 componentes,
criando verdadeiros “coros” sempre dirigidos por um “Mestre”. Em quarto lugar,
os ternos de reis, apesar de serem uma tradição familiar e comunitária,
tornaram-se ao longo da década de 2000 uma referência como espetáculos
populares, desde que a Fundação Catarinense de Folclore Franklin Cascaes,
passou a promover encontros desses ternos na praça da Matriz, em Florianópolis,
na data de 6 de janeiro.
1.2 – Os Ternos de
Reis sob a perspectiva dos Estudos Subalternos
No entanto, apesar de sua capital importância na manutenção
da identidade ilhoa, pouco ou nada se sabe dessas vozes que cantam canções
herdadas há tantos séculos. A ignorância frente este tipo de cultura e
conhecimento tem uma explicação. Segundo Spivak,
o
subtexto da narrativa palimpséstica do Imperialismo pode ser reconhecido como o
“conhecimento subjugado”, isto é, “uma grande parte de conhecimentos que vêm
sendo desqualificados ou tidos como inadequados por serem insuficientemente
elaborados: conhecimentos ingênuos, localizados abaixo da hierarquia que requer
nível de cognição e cientificidade”. (FOUCAULT apud SPIVAK, 1988, p. 25).
Há, outrossim, toda uma poética por trás de um saber
aparentemente “ingênuo” e “popular”, como é o caso das cantigas de ternos de
reis. Podemos auferir a este tipo de expressão folclórica, valores que vêm da
mais alta tradição da poesia, desde os Aedos na Grécia até os Troubadours na
França Provençal. Como aqueles poetas, estes cantores também formulam versos
improvisados, rimas, acompanhados de músicas. Citando Doralécio Soares, temos o
terno de reis de Itacorubi, por exemplo, integrado pelos senhores Agapito,
Campolino, Vadinho e Arno, sendo o chamador o Sr. Estevão. Nas recolhas de
Soares, podemos ver nitidamente a questão poética presente. A seguir
transcrevemos um trecho dos versos cantados por eles:
Meu senhor estou agora
Debaixo do seu beirado
Mande nós entrar pra dentro
Do sereno estamos molhado (SOARES, 2002, p. 41)
Observe-se que apesar da linguagem ser “popular”, utilizando
muitas vezes formas gramaticais e sintáticas diferentes das da norma culta,
(“estamos molhado/mande nós entrar pra dentro”), há sempre rimas no segundo e
quarto versos das estrofes cantadas (beirado/ molhado). Além disso, há a
construção de versos com palavras que possuem sonoridade parecida, assim, há
uma ressonância de letras e sons já na primeira estrofe da canção: (S – senhor/seu/sereno) (M – meu/mande/molhado) (D/B – debaixo/beirado/do).
Podemos também observar na primeira estrofe dos estribilhos
a tradição da repetição poética, assim, através de palavras repetidas
(Nasceu/Ramo/Flor/Maria), temos a seguinte construção de rimas e versos:
Da terra nasceu o ramo
Do ramo nasceu a flor
Da flor nasceu Maria
De Maria o Redentor (SOARES, 2002, p. 42).
Essa linguagem aparentemente “popular” mostra-se, ao
contrário do que se pensa comumente, bastante erudita para os dias atuais,
revelando a herança açoriana nas expressões que seguem:
Aqui estou eu em vossa porta
Como feixinho
de lenha
Esperando a resposta
Que de vossa boca
venha (SOARES, 2002, p. 42). (grifos
nossos)
Repare-se na construção sintática, com o verbo ao final da
frase (venha), as expressões lusas típicas do tratamento formal (vós, vossa) e
da cultura portuguesa (feixinho de lenha).
Para além de tudo isto, ainda temos toda uma conotação
simbólica expressa nas canções: essa conotação inclui uma fórmula/conceito de
Santidade = Nobreza. Conceito este, advindo do modus vivendi dos portugueses e de sua ligação com a religião
cristã. Portanto, quando a acolhida é favorável, os cantores assinalam:
Porta aberta, luz acesa
É sinal de alegria
Mande entrar os Santos Reis
Com sua nobre família (SOARES, 2002, p. 42).
Nesta simbologia, os cantores tomamo lugar dos três Reis
Magos e a família visitada ocupa o lugar da família de Jesus. Há assim, uma
transposição do real para o imaginário, do cotidiano para uma espécie de
“Ritual Performático” (SCHECHNER, 2012) onde todos participam e todos se veem
modificados temporariamente pela presença do Sagrado em suas vidas. Desta
forma, os cantores de ternos de reis têm um duplo papel no cotidiano de suas
comunidades: por um lado, são eles, os “arautos do sagrado”, que levam a Boa
Nova aos lares da comunidade e santificam as casas e as famílias visitadas; por
outro lado, eles constituem uma espécie de “célula agregadora” da sociedade,
unindo vizinhos, parentes e amigos através das cantigas de ternos de reis e seu
ritual.
Se essas práticas são tão salutares na sociedade, a pergunta
que fica é: Por que são tão desconhecidas do grande público? Por que somente os
moradores de Florianópolis e arredores têm noção do que sejam? Talvez a
resposta esteja em que existe toda uma valorização do saber científico, mas não
dos saberes populares. As vozes cantantes de Itacorubi, Ribeirão da Ilha,
Palhoça, entre tantos outros distritos, são vozes ignoradas pelo sistema
capitalista. De acordo com Boaventura de Souza Santos, deveria existir uma
Epistemologia do Sul,
por
epistemologia do Sul quero dizer o encontro de novos processos de produção e
valorização de saberes válidos, sejam científicos ou não-científicos, e de
novas relações entre diferentes tipos de saberes nas bases das práticas de
classes e grupos sociais que tem sofrido de forma sistemática a opressão e a
discriminação causada pelo capitalismo e pelo colonialismo.(SANTOS, 2012, p.51).
Podemos
afirmar, assim, que a poética dos ternos de reis só não é mais (re)conhecida,
por ser uma “canção/poesia do povo” ou como quer Spivak ( 1988), “dos
subalternos.”
Em que momento o saber popular e o conhecimento intuitivo de
poesia tornam-se ignorados? De acordo com Santos, existe uma ecologia de
saberes, que implica mais de uma forma de conhecimento. “[...]
Epistemologicamente a sociedade capitalista moderna é caracterizada pelo fato
de que favorece as práticas em que o conhecimento científico prevalece”.
(SANTOS, 2012, p. 57).
Para o sociólogo luso, a ecologia de saberes implicaria não
no descrédito do saber científico, mas na inclusão de outros saberes, não científicos
e tão válidos quanto. Seria uma forma de angariar saberes de maneira
contra-hegemônica, garantindo credibilidade aos saberes não científicos.
(SANTOS, 2012, p. 57).
Talvez, esta seja a hora de fazermos a mesma pergunta de
Spivak: Pode o subalterno falar? Segundo
a autora indiana, as minorias e os desfavorecidos, ainda são maioria
silenciosa. Neste sentido, não é de surpreender que os ternos de reis,
expressão desta “maioria silenciosa” permaneça ignorado. Como Santos (2012) refere,
o problema não é o que o saber científico conhece, mas o que, em nome do saber
científico, se ignora. Quando um determinado saber não tem uma interferência na
vida prática e no meio ambiente do mundo real e objetivo, quando um saber é
simbólico e intuitivo, ele é meramente descartado. A sociedade capitalista é
uma sociedade de resultados, não de buscas. Nada há mais anticapitalista do que
a arte pela arte, a arte sem utilidade alguma, apenas pelo prazer de existir,
de tocar a alma dos homens. E o que é a poesia? E o que são as canções de
ternos de reis, senão isso: arte? E para além da fruição estética, uma ligação
com o sagrado? Num mundo mecanicista,
cientificista, materialista, pouco espaço há para a poesia, a sabedoria
popular, o sagrado: os três eixos constituintes dos ternos de reis. Além disso,
esta expressão da cultura e do folclore catarinense, vai muito mais fundo no
inconsciente coletivo (JUNG, 2012) do que poderíamos pressupor. A seguir,
analisaremos o impacto dessa manifestação folclórica e dessas cantigas na vida
moderna, seja através da questão mitológica, religiosa ou de fundo psicanalítico.
1.3
– Mitos e arquétipos
“O mito é o nada que é
tudo”, já dizia o poeta Fernando Pessoa em seu livro mitológico-poético, Mensagem. Esse nada do mito, descrito
pelo bardo português, bem pode ser a sua significação na sociedade atual, uma
sociedade amplamente massificada e “dessacralizada” ou “profana”, como quer
Mircea Eliade (2001, p. 19-21). Porém, mesmo vivendo na Era da Ciência e da
Razão, o homem, este ser em boa parte “irracional”, ainda busca por
transcendência em seu dia a dia, ainda anseia por mitos (mesmo que estes sejam
construídos pela indústria cultural de massas, vide Marylin Monroe, Maddonna,
Michael Jackson). Enfim, o “animal moral”,
como foi descrito o ser humano por Robert Wright em seu livro homônimo, é
aquele que,
a despeito de toda e qualquer racionalização da realidade, ainda busca uma via
espiritual para explicar as lacunas deixadas pela ciência e pelo mundo
tecnológico da informação.
O mito é, no sentido
empregado nesta tese, mais que uma
transfiguração do real, ele é uma necessidade humana de transcendência. Daí
decorrerem tantas imagens e “mitologias” mesmo na vida moderna. Sem nos
alongarmos muito, temos os Mitos Geracionais e Cinematográficos como James
Dean, Marlon Brando, Elisabeth Taylor, (1950-1960); Mitos da Cultura Pop como
os Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin (1960-1970); Mitos Revolucionários
como Che Guevara e Fidel Castro na América Latina (1960-2000); Mitos Literários
e Geracionais como os Beatniks, Charles Bukowski, J. D. Salinger e, mais recentemente, Paulo
Coelho e J. K.
Rowling (1950-2000), entre tantos outros exemplos (JAHN, 2015). A verdade é que
o imaginário humano continua sua incessante revolução, seu incessante
aperfeiçoamento, mesmo quando existe de fato uma revolução tecnológica em
andamento. Assim é que Joseph Campbell,
em seus ensaios sobre a Mitologia da Vida Moderna (2010), pôde comprovar a
existência,
na atualidade,
dos anseios do homem ancestral que se fez contemporâneo. Não é de estranhar que
o leitor pergunte: Por
que tais anseios permanecem ainda hoje, neste tempo e espaço cosmopolita e
profano,
na
Era da Tecnologia, da Informação e das descobertas sobre o DNA? Uma possível
resposta a tais questionamentos será a seguinte: Todos nós, homens da Era da Informação,
tivemos uma origem comum e ancestral que,
de quando em quando,
é resgatada através de rituais, músicas, cantos, danças, sem que nós, cidadãos
das metrópoles, tenhamos plena consciência do que estamos fazendo e resgatando.
Esta tese tem por objetivo lançar luz às
canções, danças e festas aparentemente cotidianas de nossas urbes que são na
realidade o ponto de contato com uma verdade maior, com a nossa porção de
transcendência, com o nosso lado mítico e místico que trazemos desde a
pré-história, desde o primeiro xamã e o primeiro ritual comunitário no interior
de uma caverna. Assim, o mito é aquilo que resgata nossas origens. De acordo
com o professor Karl Kerényi, “Origem” tem pelo menos dois significados na
mitologia.
Enquanto conteúdo de uma narrativa, de um
mitologema,
é fundamentação; como conteúdo de um ato, é fundação. Nos dois casos, significa
um recolocar-se do ser humano em sua própria origem e, desse modo, o
aparecimento do elemento original alcançável pelo ser humano, na forma de
figuras originais, mitologemas originais e cerimônias originais. Todas as três
formas de manifestação podem ser os modos de manifestar o mesmo elemento já
alcançado pelo ser humano, a mesma ideia mitológica (JUNG e KERÉNYI e 2011, p. 30).
Seguindo o pensamento
de Kerényi, podemos dizer que o mito é uma verdade ancestral fundacional de
nossa humanidade. Nossa origem e nossa estrutura básica fundante de quem somos
desde tempos imemoriais até os dias atuais. Relendo Pessoa, o mito é nosso nada
e nosso tudo – começo e fim de nossa identidade tribal, gregária e humana.
Assim, analisaremos a seguir como se formaram os mitos cristãos, por que
permaneceram tanto tempo no imaginário coletivo e quais suas funções no mundo
atual, em especial nas comunidades em que estivemos realizando nossa pesquisa
de doutorado.
1.4
– Os arquétipos do inconsciente coletivo
– uma primeira abordagem
Em nossos estudos
sobre as funções que teriam as imagens da Virgem Maria, de Jesus Menino e dos
Reis Magos na mitologia cristã, deparamo-nos com alguns conceitos fundamentais
que seriam uma tentativa de explicar a permanência dessas figuras no imaginário
coletivo durante milênios. Mesmo adentrando a era da ciência e da tecnologia, o
homem contemporâneo é tributário dos mitos e do “pensamento mágico”. Eis a
questão fulcral que inquieta cineastas, artistas e pensadores de nossa época: “Como pode o homem atual
submeter-se a ideias religiosas milenares?” A resposta a esta questão é
complexa e tem múltiplos vieses, por isso, trataremos de responder em parte por
meio de teorias da psicanálise, ciência relativamente nova e ainda em fase de
experimentação.
De acordo com Sigmund Freud, criador da
psicanálise, o ser humano viveria entre dois polos complementares de
existência: o polo dos conteúdos que ele acessa ao longo do dia e sobre os
quais tem absoluta consciência e controle (o consciente); e o seu polo oposto,
ou seja, os conteúdos reprimidos, recalcados ou esquecidos que costumam se
revelar nos sonhos, sobre os quais o homem não tem nenhum controle (o
inconsciente). “Assim, segundo Freud, o inconsciente é de natureza
exclusivamente pessoal, embora ele tenha chegado a discernir as formas de
pensamento arcaico-mitológicas do inconsciente.” (JUNG, 2012, p. 11). No
entanto, para o psicanalista Carl Gustav Jung, discípulo de Freud e seu principal
contestador, haveria dois tipos de inconsciente com duas funções diversas:
1) O inconsciente pessoal, com conteúdos
que ele chamará de complexos
de tonalidade emocional e que se revelam nos
sonhos e na livre associação de ideias do indivíduo; 2) e, mais abaixo,
repousando numa camada mais profunda da psique humana, estaria o Inconsciente
Coletivo, cuja origem já não remonta mais à experiências ou aquisições
pessoais, mas,
sim, teria uma natureza universal, com conteúdos e modos
de comportamento idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um
substrato psíquico comum de natureza suprapessoal que existe em cada indivíduo
(JUNG, 2012, p. 12).
Os conteúdos desse
Inconsciente Coletivo são chamados de “arquétipos”.
A palavra Archetypus já se encontra em Filo Judeu como referência à imagem de
Deus no homem (JUNG, 2012, p. 13). Esta
mesma palavra no contexto grego equivale ao Ethos platônico, ou seja, uma
representação do Ideal de Deus através da Arte humana. A arte e seus símbolos,
a mitologia e suas narrativas e heróis seriam uma “Representação Coletiva” da
cosmovisão primitiva ou arcaica. O significado do termo Archetypus fica, sem dúvida, mais claro quando se
relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e o conto de fadas. O fato de que
os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma, foi negado
de modo absoluto até nossos dias: “Todos
os acontecimentos mitologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as
fases da lua, as estações chuvosas, etc., não são, de modo algum, alegorias dessas
experiências objetivas, mas,
sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a
consciência humana consegue apreender através da projeção, isto é, do espelhamento nos
fenômenos da natureza” (JUNG, 2012, p. 13-14).
Sendo assim, as
religiões do mundo se valeriam de imagens arquetípicas e de palavras sagradas
para poder alcançar a camada mais profunda da alma humana e poder representar o
divino para o homem comum. De acordo com Jung, essas religiões seriam
depositárias de uma sabedoria revelada, que exprime “os segredos da alma em
imagens magníficas”. Desta forma,
pode-se dizer que “quanto mais bela, mais sublime e abrangente se tornou a
imagem transmitida pela tradição, tanto mais afastada da experiência
individual” (JUNG, 2012, p. 16).
As obras de arte
religiosas estariam, nessa perspectiva, eivadas de símbolos que vão muito além
das aparências. A mãe divina, virginal; a criança divina que realiza milagres;
os sinais do nascimento de um messias; os reis magos, profetas de um porvir;
seriam todos arquétipos e construções mitológicas, simbólicas, representações
do imaginário coletivo, muito além de qualquer conteúdo histórico, documental,
científico. Esses deuses e santos cristãos são a essência da alma ocidental,
são a ligação entre o homem transitório, vulnerável e sua porção eterna,
transcendente, imutável. O homem liga-se a Deus, não só por intermédio de
outros homens, mas também pela via dos símbolos, dos mitos e heróis. E qual não
é a trajetória de Cristo, desde antes de seu nascimento até após sua morte
trágica, senão a trajetória do herói divino, que, sendo o “filho de Deus”,
nasce, morre e ressuscita, levando a humanidade a um questionamento metafísico:
se Deus pode consubstanciar-se num homem, então, por analogia, todos os homens
também são “filhos de Deus”. E se nem mesmo a morte física pode acabar com a
obra e o espírito de um Avatar, então, apesar das mudanças inevitáveis, o
universo é uma força eterna e autorreguladora, capaz de criar vida depois da
vida.
Para o homem arcaico,
possuído de símbolos e mitos, o mundo não seria um caos inexplicável, mas, antes, uma Ordem
Cósmica, um ir e vir no oceano da existência, início e fim de ciclos – ad infinitum – dentro de um processo
maior de evolução da consciência humana. A arte, repositório desse imaginário
transcendente, seria então a ponte, a ligação entre o homem e Deus. A música, a
poesia, os versos improvisados mnemonicamente, artes da Grécia e sua tradição
oral, seriam então as molas propulsoras de toda uma gama de manifestações
artísticas que, partindo das narrativas cristãs, iriam se consolidar como forma
de expressão dos arquétipos fundantes da Civilização Lusitana e, mais tarde, da
Brasileira.
1.5
– O arquétipo de anima e
da mãe divina
De acordo com Jung (2012, p. 54) o ser humano
seria constituído de duas dimensões: uma dimensão material, palpável, auferida
pelos cinco sentidos, estudada pela ciência dos átomos e da medicina (ideias
essas, repare-se bem, do início do século XX ); e uma segunda dimensão cujas características
seriam opostas, ou seja, uma parte do ser humano que é etérea, impalpável,
simbólica e que é constituída principalmente por imagens, ideias platônicas e
arquétipos, cujo papel seria o de ligar o homem à sua essência. Essa dimensão
incomensurável, invisível e hipotética do ser humano é conhecida como alma pela
Igreja Católica e Anima por Jung, sendo que entre ambos os conceitos há uma
larga diferença. A Anima faria parte do homem tanto quanto seus pulmões ou
coração, com a diferença de que os órgãos são formados por células que se
dividem e a Anima seria de natureza indivisível. A Anima caracteriza-se pela
oposição à ideia de “medida”, ela seria o “não mensurável” da vida humana.
Note-se que estas ideias de Jung irão coincidir
em parte com os estudos de física quântica de Einstein, que ficará famoso pela
fórmula em que prova que a matéria e a energia são uma mesma coisa, com o
diferencial de que a matéria seria uma forma mais densa de energia, enquanto a
luz seria uma forma menos densa da mesma energia. A diferença entre ambos os
cientistas é que, para Einstein, matéria e energia seriam uma mesma coisa e
para Jung há uma separação (pelo menos a nível didático, ao expor sua teoria)
entre corpo físico e Anima.
Anima seria também uma espécie de repositório de
imagens e impressões que levariam o homem de encontro ao transcendente. Sabe-se
que desde a Pré-História a necessidade de transcendência acompanha a
humanidade. Essa necessidade, de acordo com Jung (2012, p. 56) faria parte de
uma espécie de Ethos primordial, ou seja, dos valores que, desde as sociedades
mais arcaicas até o século XXI, seriam o “norte” e o “coração” do homem em
busca por si mesmo.
Na tentativa de encontrar-se, o homem acabou
criando uma série de imagens primordiais que explicassem o mistério da vida; entre estas
imagens, a que estudaremos agora, da Deusa-Mãe. Segundo Jung (2012) e Campbell
(2008), o milagre da gestação feminina não raro deu lugar a analogias e mitos
de gestação da própria natureza. Mitos como o de Deméter, deusa da agricultura;
e Perséfone, deusa da primavera, que é raptada e levada ao mundo subterrâneo
durante os meses de inverno e, ao retornar ao regaço
de sua mãe e ao convívio dos homens, enche a terra de flores e frutos. Podemos
constatar em ambas as deusas a representação arquetípica da Grande Mãe, da
Deusa , aquela que gera a vida, antecessoras no tempo do culto da Mãe de Deus,
Virgem Maria. Há, portanto, uma série de estudos arqueológicos, históricos e
antropológicos, segundo os quais todo um panteão de deusas pagãs e orientais
daria lugar a uma única imagem plasmada e aceita da Deusa-Mãe, segundo o
cristianismo. Essa seria a imagem de Nossa Senhora, Virgem Maria.
A Mãe de Deus, ou de Jesus, é, segundo a
tradição oriental e pagã, uma virgem. A concepção divina é um mito oriental que
se arrasta há pelo menos cinco mil anos antes da Era Cristã. Maria é, dessa
forma, tributária de outras mulheres, mães de avatares, como a mãe de Krishna e
a mãe de Buda. Como mãe de uma criança divina, Maria também sofre o mesmo tipo
de perseguição política que a mãe de Krishna. Ambas são obrigadas a esconder
sua identidade e a identidade de seu filho. Krishna acaba sendo criado por um
casal de camponeses, enquanto sua mãe foge da morte. Jesus nasce no exílio,
vive de maneira incógnita até os 30 anos de idade, quando inicia sua pregação e
seu destino de mártir. Todas essas mulheres recebem uma espécie de “sinal dos
deuses”: a mãe de Krishna concebe durante uma prolongada meditação na Floresta;
a mãe de Buda sonha que um elefante sai de seus flancos (o elefante era
considerado uma espécie de deus na Índia daqueles
tempos); a mãe de Jesus recebe a visita do Anjo Gabriel.
De acordo com Campbell, o arquétipo da Virgem
Maria, remontaria a pelo menos cinco mil e quinhentos anos antes da Era Cristã,
quando existiam representações da Deusa-mãe com as mesmas características
antropomórficas e simbólicas (CAMPBELL, 2008, p. 46).
No caso da simbologia da Virgem Maria e na de
suas antecessoras, podemos destacar pelo menos estes aspectos: fertilidade,
bondade, compaixão, amorosidade, acolhimento, abundância, plenitude, manutenção
da vida. E, no caso da criança recém-nascida, o aconchego e a harmonia que
justificam a maternidade idealizada das mulheres até os dias atuais. Maria
inicia o paradigma da maternidade na Cultura Ocidental. Esse símbolo
emblemático da maternidade e da pureza virginal foi o epicentro do imaginário
medieval cristão quando a Igreja assumiu publicamente a importância dessa
figura feminina. Maria, mãe de Jesus/Mater Dei, acabou fazendo frente e
assimilando para si a devoção que as mulheres em especial tinham pelas deusas
pagãs, advindas de culturas milenares (como Grécia e Roma) e que pertenciam ao
panteão dos deuses ocidentais até o advento do Cristianismo.
Sob essa perspectiva, a Igreja Católica teve um
papel não só de “apagamento” das culturas locais como também exerceu uma
espécie de “mecanismo regulador e moralizante” da sociedade de então. Diante da
extrema violência e desprezo com que eram tratadas as mulheres, o advento de
Maria, Mãe de Deus, fez com que raptos, abusos, ligações incestuosas, não
tivessem mais lugar tanto no imaginário europeu, quanto nas atitudes cotidianas
de reis e vassalos. A Igreja foi uma instituição civilizadora neste sentido,
pois colocou regras morais e éticas onde elas não existiam, ou eram falhas.
Assim, Maria surgiu como uma figura relevante e simbólica que deu ao universo
feminino os status de “Mãe”, “Virgem” e também de “Esposa”.
De acordo com Mircea Eliade, em seu Dicionário das Religiões,
Maria permaneceu virgo in partu et post partum, ou seja, semper virgo. No conjunto das personagens da trama cristã
primordial, ela vai acabar assumindo um papel cada vez mais sobrenatural.
Assim, o II Concílio de Nicéia (787) situa-a acima dos santos, aos quais só se
reserva a reverência (douleia),
enquanto a Maria se deve a super-reverência (hyperdouleia). Ela se torna uma personagem da família divina, a Mãe
de Deus. [...]. Para além de ser maria in
caelis adsumpta; ela adquire também, de acordo com os franciscanos, as
características de Mater ecclesiae,
mediatrix et intercessor pelo gênero humano junto a Deus (ELIADE e IOAN,
2009, p. 123).
Portanto, Maria adquiriu inúmeras funções:
mediadora e intercessora entre a humanidade e Deus, Mãe da Igreja e Mãe de Cristo.
Essa figura emblemática, trazida a lume pelos evangelhos e pelo Concílio de
Nicéia, elevou as mulheres a um patamar divino e trouxe para dentro de uma
sociedade que tinha muitas guerras e poucas regras, todo um comportamento e uma
visão de mundo que mudariam estruturalmente as relações sociais da época. Desta
maneira, surgiu o sacramento do casamento, a exigência da virgindade da esposa,
o batismo dos filhos gerados na relação homem-mulher, marido-esposa, enfim,
toda uma série de regras que traziam mais ordem e constituíram a base da
família ocidental judaico-cristã. Assim, os preceitos morais e éticos do
Cristianismo formaram o substrato de uma nova civilização, que viria a tomar
conta da Europa e depois de outros continentes, entre eles, América e África.
Sua força era tal que Maria multiplicou-se em inúmeras imagens, cada uma de
acordo com a cultura e o lugar de onde provinha. Assim, surgiram, ao longo
dos tempos, as mais variadas representações da Virgem Maria, ou Nossa Senhora,
entre as quais figuram, por exemplo: Nossa Senhora do Menino Jesus de Praga;
Nossa Senhora de Lourdes; Nossa Senhora de Fátima; Nossa Senhora do Pilar;
Nossa Senhora Aparecida; Nossa Senhora de Guadalupe; Nossa Senhora de
Caravaggio, entre outras.
Em sua missão de criar uma sociedade mais
regrada, a Igreja trouxe novos modelos de família: a família divina, o pai, a
mãe, o filho, e o Espírito Santo. Nessa nova célula social, Cristo e Maria
tiveram funções relevantes que serviram de modelo à humanidade. Maria, a Mãe de
Deus, tornou-se o núcleo ao redor do qual girava o ambiente familiar e
doméstico. Dessa forma, as mulheres apropriaram-se da identidade de “Mãe”, mais
adiante de “Esposa”, e deram vazão aos seus anseios mais antigos. A mulher
passou a ser não só o repositório do milagre divino, como também a principal
transmissora das tradições familiares e dos valores de seu tempo. Cristo, a
criança divina, representava, ao mesmo tempo, o milagre
da vida e a superação de paradigmas que já não serviriam mais à humanidade,
criando, assim, uma nova lei: a lei do
amor ao próximo.
Estas duas figuras paradigmáticas, a Mãe Divina
e a Criança Divina ou Filho de Deus, trouxeram para a Europa, e mais tarde para
as Américas, um novo olhar sobre a família e o papel do indivíduo na sociedade.
Ao optar pelos excluídos, pelos enfermos, pelos pobres e oprimidos, Jesus
revolucionou as estruturas sociais não só de seu tempo, mas do porvir. O
sentido de justiça divina e de caridade se modificou a partir da sua passagem
pela Terra. Jesus pregou a justiça através do amor e da partilha, ao passo que
o antigo testamento pregava a justiça por meio de vingança (Lei de Talião –
olho por olho, dente por dente). Sua compaixão foi o que mudou um mundo regido
pelo medo e pela violência. Jesus representou o emergir de um novo paradigma e
de um novo estilo de comportamento: a tolerância com o diferente, a superação
do ódio e das inimizades, a benevolência com os mais fracos, a capacidade de
doar-se sem pedir nada em troca, a capacidade de não julgar o outro, sem olhar
antes para si próprio. Enfim, Jesus foi um Mestre no mais amplo e verdadeiro
sentido do termo. Mestre de si mesmo, Mestre de seu povo. Eis porque sua figura
é até hoje reverenciada, cantada, versejada em poemas populares, louvada das
mais diversas formas, servindo de modelo das mais belas obras de arte sacra.
Além de todos estes aspectos elencados acima,
podemos dizer também que Jesus e Maria, por fazerem parte de um panteão
sagrado, representam, em última instância, o lado transcendente da humanidade.
Se olharmos de forma cronológica e mitológica para nossa história, veremos que
o homem emergiu do tempo e espaço sagrados para o tempo e espaço profanos ao
longo dos últimos séculos. Houve, assim, uma espécie de dessacralização da
realidade, da vida cotidiana, o que trouxe inúmeras angústias existenciais que
antes não se manifestavam. Porém, para o homem religioso, Jesus e Maria
continuaram a fazer sentido e a realizar milagres. Refletindo sobre qual seriam
as principais diferenças entre estes dois tempos e espaços, o religioso e o
profano, Mircea Eliade explica o seguinte:
Para
aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediatamente
transmuta-se
numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para todos aqueles que têm uma
experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como
sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma
hierofania. O homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o mais
possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é
compreensível pois [...] para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade
por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer, ao mesmo tempo, realidade, perenidade
e eficácia. A oposição sagrado/profano, traduz-se muitas vezes como a oposição
entre real e irreal. [...]. É, portanto, fácil de
compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar
da realidade, saturar-se de poder
(ELIADE, 2001, p. 18, grifos do autor).
De acordo com o mesmo
autor, sagrado e profano seriam também duas cosmovisões, duas visões de mundo e
de universo, duas formas de colocar-se frente à vida, frente sua própria
história, não só como indivíduo, mas também como espécie. Segundo ele:
O
leitor não tardará a dar-se conta de que o sagrado
e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história. Esses modos de ser
no Mundo não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia
[...], em última instância os modos de ser sagrado
e profano dependem das diferentes
posições que o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam [...]
a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência
humana. [...] O homem das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus, mas seu comportamento
enquadra-se no comportamento geral do homem e, por conseguinte, interessa à
antropologia filosófica, à fenomenologia, à psicologia (ELIADE, 2001, p. 20,
grifos do autor).
Desta maneira, podemos compreender o sentido
sociológico e histórico, para além do sentido psicológico, da permanência
atemporal de figuras como Maria e Cristo. Se tomarmos a história e a sociologia
como bases para explicação de nossa hipótese (de que os mitos cristãos são
atemporais), veremos que o homem histórico do Ocidente viveu por mais de 1500
anos dentro de uma realidade muitas vezes sagrada. Tudo na vida era regido por
uma força maior, mística, sobrenatural, à qual os homens nominavam de Deus.
Todos os pensamentos, desejos, ações, eram regidos pelos princípios religiosos.
Deus era a medida de todas as coisas, diferente da noção grega, “o homem é a
medida de todas as coisas”, que seria retomada a partir da Renascença. E, mesmo após
a Renascença e sua crise de valores, a humanidade continuou dividida entre duas
visões de mundo, a saber: a visão racional e dessacralizante dos Iluministas e
da Ciência moderna; a visão sagrada da Igreja, e mais adiante a visão
filosófica do Budismo e a nova racionalidade permeada pela Física Quântica de
Einstein. Houve, desta forma, uma quebra de paradigmas: se, de um lado, o mundo se
divide entre sagrado e profano, de outro lado, com as descobertas da Física
Contemporânea, e também da Biologia, sagrado e profano acabam se confundindo,
razão e intuição acabam fazendo parte do mesmo homem, o homem do século XXI,
que é tributário de uma visão mais holística da vida.
Neste sentido, não surpreende que, em certas
comunidades, ainda hoje em dia, os arquétipos da Virgem Maria e de Cristo ainda
possuam uma função simbólica e social de agregação das famílias e da
vizinhança. Se, por um lado, o mundo contemporâneo oferece outros tipos de
vínculos afetivos, assunto que Zygmunt Bauman (2009) irá explorar em seus
estudos, que falam da “fluidez” das relações sociais, dos “vínculos líquidos”,
ou seja, que se dissolvem rapidamente frente qualquer obstáculo maior; por
outro lado, há toda uma reação a este tipo de comportamento, reação esta, que
se mostra na perpetuação dos vínculos familiares e de compadrio em sociedades
mais tradicionais e menos influenciadas pelo hiperconsumo.
Como uma espécie de contracorrente, as
comunidades ribeirinhas de Florianópolis, caracterizam-se justamente pela
importância que rege os vínculos familiares, as relações de vizinhança, as
relações de compadrio. Assim, a família e a comunidade são o elo entre o
passado e presente. As tradições religiosas e folclóricas são perpetuadas de
geração em geração, passando de pai para filho os dons, as músicas, os
costumes, o linguajar. Cada geração que chega tem o papel relevante de
continuar a tradição, por mais que haja inovações, seja nas cantigas, seja nos
figurinos. Os mais velhos são tratados como Mestres, como aqueles que detêm a
sabedoria e o conhecimento necessários para levar adiante, através de seus
familiares e vizinhos, as cantorias, as performances, as brincadeiras e
festejos religiosos e folclóricos.
Há, dessa maneira, todo um respeito com os mais
velhos, com seus ensinamentos, com a transmissão daquilo que conhecem. Neste
tipo de grupo social é comum encontrar uma devoção fervorosa aos santos
cristãos, bem como à Virgem Maria, a Jesus Cristo e aos
Reis Magos. A simbologia cristã permanece viva e atuante em tais lugares.
Assim, os mitos surgidos com o cristianismo (ELIADE, 2001) continuam ativos no
inconsciente coletivo, ocupando na cidade e no espaço profano um lugar sagrado,
um tempo fora do tempo. Além disso, os arquétipos cristãos têm um papel
relevante na sociedade, qual seja:
1. A manutenção do
tecido social;
2. A agregação da
família com a comunidade;
3. A preservação dos
mitos religiosos e de tradições milenares;
4. A revitalização do
imaginário cristão;
5. A manutenção de
arquétipos importantes para o Inconsciente Coletivo;
6. A preservação de tradições religiosas e
folclóricas que infundem à comunidade, uma identidade local frente um mundo
globalizado.
Outrossim, essas comunidades de Florianópolis se
organizam de tal forma que seu panorama cultural e ideológico misture ao mesmo
tempo o sagrado e o profano. Assim, se nos dias comuns, o Sr. Nivaldo Rodolfo
Cunha é um simples pescador, nos dias de Festa Religiosa ele é o vate, o músico
responsável por entoar loas, espalhar bênçãos, improvisar versos que cantam a
glória de Jesus, de Maria e dos Reis Magos. Nestes dias festivos, o Sr. Nivaldo
veste a roupagem sagrada, o corpo e os gestos acompanham a voz, que soa alto e
canta louvores a Deus. Neste tempo e neste espaço de performance, o tempo cronológico
desaparece, dando lugar ao momento único, presente e eterno. Do mesmo modo o
espaço físico se modifica, adquire novos significados: a rua já não é rua; é o
espaço de passagem do cortejo, dos fiéis, da missa, dos cânticos litúrgicos.
Igreja e rua já não se distinguem uma da outra, mas ocupam um mesmo lugar
simbólico. A cidade volta a ser o lugar sagrado dos deuses e dos antepassados.
Como querem Mircea Eliade e Karl Kerényi, o
sagrado funda o profano e se mistura a ele. Neste sentido, as comunidades de
Florianópolis estudadas em nossa pesquisa de campo, refundam a cidade em seus
ritos religiosos e folclóricos. De acordo com Kerényi, “Fundam-se cidades que
nas épocas das mitologias vivas pretendiam ser cópias do cosmos, do mesmo modo
que os mitologemas cosmogônicos fundamentam o mundo. [...]. Essas cidades
recebem como base o mesmo solo divino que o mundo. Desse modo, convertem-se
naquilo que o mundo e a cidade foram de maneira similar na Antiguidade: morada
dos deuses.” (JUNG e KERÉNYI, 2011, p. 24-25).
Segundo o
mesmo autor, a própria arquitetura e disposição dos pontos cardeais e entradas
das cidades gregas e, mais tarde, das romanas, teria a ver com uma espécie de
“Geometria Sagrada”, que seria seguida tanto pelos fundadores da polis,
quanto por seus habitantes. Para ele, as cerimônias sagradas no espaço urbano,
não são nada mais que uma “transformação de um conteúdo mitológico em ação” (JUNG
e KERÉNYI, 2011, p. 25, grifo nosso).
Lembrando que o mito é parte integrante e
fundante da identidade coletiva, a reatualização dos mitos cristãos nas
festividades catarinenses não deixa de ser uma forma de fundamentar e dar
significado ao mundo circundante. Para Eliade:
O
Mundo (quer dizer, o nosso mundo) é um universo no
interior do qual o sagrado já se manifestou e onde, por consequência, a rotura dos níveis tornou-se possível e
se pode repetir. É fácil compreender porque o momento religioso implica o momento cosmogônico: o sagrado revela a
realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação –
portanto, funda o mundo, no sentido
de que fixa os limites e, assim, estabelece a ordem cósmica (ELIADE, 2001,
p.33).
Podemos inferir, a partir das palavras deste
autor, que as festas religiosas de Florianópolis e, em especial, os rituais e
cantigas de Terno de Reis, são uma forma de reorganizar a sociedade e o mundo,
refundando o espaço urbano, e trazendo para a via pública, bem como para o
espaço privado das casas da vizinhança, toda uma cosmogonia. Essa cosmogonia se
caracteriza por uma organização cerimonial do mundo junto com seus significados
mais primordiais e sagrados.
Neste
sentido, as cantigas de Ternos de Reis estão para além da música e da poesia,
ocupando um lugar de transmissão de uma tradição ancestral. O motivo pelo qual
essa tradição se perpetua mesmo na era da TV, do rádio, do cinema e do
computador, é justamente porque ela reatualiza arquétipos que são divinos e
humanos ao mesmo tempo. A Mãe de Deus, Maria, é personagem histórica e mítica
ao mesmo tempo, sendo duplamente representativa: enquanto deusa ou vinculada a
Deus; enquanto humana e mãe de Cristo. O mesmo ocorrendo com Jesus: de um lado,
Filho de Deus; de outro, personagem histórico que revolucionou as leis dos
judeus. Se Maria é o arquétipo da Mãe,
de nossa primeira imagem e vínculo afetivo; ponto fulcral da existência humana
e símbolo da gestação; Cristo é o arquétipo da criança divina, Redentora,
aquele que veio cumprir uma missão especial diante da humanidade. Estes dois
arquétipos, da Mãe Divina e da Criança Divina, acrescidos dos Reis Magos, é que
perfazem as imagens do inconsciente coletivo tanto do povo cristão, quanto dos
cidadãos das comunidades ribeirinhas de Florianópolis.
2 – CONCLUSÃO
Para além de um saber não científico, as cantigas de reis
também expressam uma visão de mundo que parte do sagrado para o profano. Ao
consolidar-se como Festa Religiosa, a Folia de Reis, ou Terno de Reis (como é
conhecido em Florianópolis), acaba por romper as margens da razão analítica,
para irromper nas searas da intuição, da fé, do sagrado, e desta maneira,
inaugurar um tempo mítico dentro da sua forma ritualística de performance
(SCHECHNER, 2012).
Nesta cronologia e neste espaço sagrados, o homem comum
encontra-se com sua própria origem e reitera seus valores mais caros. Este ensaio
busca, portanto, dar voz a este homem do povo, ignorado pelo sistema
capitalista, pela hegemonia da indústria cultural de massas, por um mundo cada
vez mais distópico e amedrontado, cuja
ciência, com todos os seus avanços, ainda não respondeu às questões mais
íntimas e genuínas da humanidade.
REFERÊNCIAS
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Zygmunt. O Amor Líquido.São Paulo,
Record, 2009.
CAMPBELL,
Joseph. As Máscaras de Deus: a
mitologia ocidental. São Paulo: Palas Athena, 2008.
CAMPBELL,
Joseph. Isto és Tu: redimensionando a
metáfora religiosa. São Paulo: Landy, 2002.
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Joseph. Mitologia na Vida Moderna. Rio
de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2010.
ELIADE,
Mircea. O Sagrado e o Profano: a
essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ELIADE,
Mircea; IOAN P. Couliano. Dicionário das
Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
JAHN,
Lívia Petry. A Literatura Tradicional Oral Herdada dos Açores e Praticada no Brasil:
as cantigas de ternos de reis de Florianópolis, Santa Catarina. Tese de
Doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.
JUNG,
C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente
Coletivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
JUNG,
C.G., KERÉNYI, Karl. A Criança Divina:
uma introdução à essência da mitologia. Rio de Janeiro, Vozes, 2011.
PEREIRA, Nereu do Vale. Contributo
Açoriano ao Mosaico Cultural Catarinense. Florianópolis: Papa Livros, 2009.
SANTOS, Boaventura de Souza. Public Sphereand Epistemologies of The South. In: Africa Development, v. XXXVII, n. 1, p. 43-67, 2012.
SCHECHNER, Richard. Antropologia e Performance de Richard
Schechner. Rio de Janeiro: Litteris, 2012.
SOARES, Doralécio.
Folclore Catarinense. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002.
SPYVAK, Gayatri C.
Can The Subaltern Speak? In: Marxism And The Interpretation
of Culture. London: Macmillan, 1988.
Um trabalho de campo e texto de Lívia Petry Jahn