Em
Mateus 20, na parábola dos trabalhadores da última hora, há uma questão de
natureza essencial acerca da natureza humana quando exposta ao amor de Deus.
“Ou
são maus os teus olhos porque eu sou bom?” — é a questão do “dono da vinha” —
figura de Deus — aos trabalhadores da “primeira hora” — que aparecem como
representação do espírito de “justiça própria”.
De
fato nós temos três grandes grupos humanos e psicológicos naquela parábola.
Temos no extremo, no pólo da justiça própria, os trabalhadores “contratados” na
primeira hora, que receberam a promessa de que “pelo esforço” do trabalho feito
ganhariam 1 denário cada um. É uma clara representação da atitude espiritual
que deseja receber pelo que produz. Na realidade essa é a esperança da Lei:
receber conforme o contrato da Lei. Ora, os que assim vivem são movidos por
justiça própria. Naqueles dias, conforme a narrativa dos evangelhos, eram
religiosos saduceus e fariseus, na sua maioria. Esses da primeira hora são
sempre um grupo minoritário, porém radical e fundamentalista.
O
segundo grupo humano aparece na figura dos trabalhadores que foram chamados
entre 9 horas da manhã e 15 horas, na hora nona dos judeus. Ora, conquanto
eles façam parte de três grupos distintos de acordo com a hora do “chamado” — 9
da manhã, meio-dia, e 3 da tarde —, de fato eles são um grupo só; e digo isto
porque o espírito da parábola os trata do mesmo modo, ou seja, eles são figura
desses encontros humanos com a Graça de Deus que assumem o chamado de Deus como
algo bom e como boa oportunidade. A mim parece razoável que esse grupo seja
feito de muito mais gente, ou de maior diversidade humana — três turmas fazendo
um único grupo —, pelo simples fato que é condizente com a realidade histórica.
Isso porque a maioria da humanidade existe nesse espírito em relação a Deus.
Dizem: “Deus é bom. Deus é importante. Deus é justo. Deus é confiável. Deus é
fundamental. Deus propõe coisas boas. Deus ajuda a gente. Quem está com Deus
está bem!” — esse é o espírito da maioria. Sim, a maior parte das pessoas
experimenta o chamado da Graça sem muita hesitação e também sem muito
excitamento, e tanto não vivem para usufruir o benefício como também não
provocam ninguém por dizerem que creem, visto que “não cheiram nem fedem”.
Experimentam a Graça na mediocridade. Sim, esses são, nos evangelhos, “a
multidão do povo”.
E
há o terceiro grupo, aparentemente também minoritário, e que é constituído
pelos que foram chamados na hora undécima, às 5 da tarde. Os desse grupo são representados
nos evangelhos pelos publicanos, pecadores, e todos os aflitos e vadios de
esperança, mas, sobretudo, pelos gentios que surpreendem a Jesus com sua fé.
Estes são os que se assumem como “cachorrinhos debaixo da mesa de seus donos”,
e não “se acham dignos” de que Jesus entre em suas casas. Estes são encontrados
na praça, ou mesmo tirados de sobre sicômoros, e apenas ouvem um convite
irrecusável, do tipo: “Desce depressa!”. Outras vezes arrombam o descanso de
Deus, como fez a mulher siro-fenícia. Esses não discutem o “chamado”, não
“teologizam” sobre Deus e correm todos os riscos sem medo. Entre esses ninguém
sabe por que foi chamado. Nem discutem o tema, pois olham para si mesmos e não
veem nada que justifique o chamado, o qual, para eles, não foi recebido como
proposta de trabalho, nem como algo em virtude da virtude, mas como salvação da
falta de significado para a existência, ou como dor, ou apenas a mais
fascinante surpresa. Sim, esses não acertaram nada previamente, não perguntaram
por condições de trabalho e nem foram esperando nada além da chance de sair de
uma existência sem significado ou presa às correntes da angústia. Estes apenas
aceitaram o convite como surpresa, pois eles não julgavam que tinham nada a
perder. Estes estavam vadios de trabalho, mas eram operários da esperança e da
fé. Para eles, viver não era um risco. O risco era não viver.
O
fato é que o “dono da vinha” manda pagar a cada grupo, a começar pelos últimos.
E esses que trabalharam apenas 1 hora — entre 5 e 6 da tarde — ganharam 1
denário cada um. E assim foi com todos. Até que chegaram os da “primeira hora”,
os do “contrato”, os da lei, os da atitude do “irmão mais velho do filho
pródigo”. E eles alegam acerca da injustiça feita contra eles, que trabalharam
de sol a sol, e que vieram a receber a mesma coisa que aqueles que haviam
trabalhado apenas 1 hora.
A
resposta do “dono da vinha” é simples. Ele diz: “Vocês receberam conforme o
contratado. Vocês não foram injustiçados. Peguem o que ganharam e podem ir. Ou
não me é licito fazer o que eu quero com o que é meu? E se eu quiser dispor do
que é meu, e dar a esses que não trabalharam como vocês o mesmo que dei a
vocês, em que lhes fiz injustiça? Ou são maus os olhos de vocês em razão de
minha Graça?”
A
Graça não cria a maldade interior, mas, diante dela, toda maldade é suscitada.
E a razão é que a maldade fica ainda mais perversa quando ela se traveste de
justiça própria.
A
leitura do Evangelho nos deixa ver que onde Jesus — a Graça e Verdade em pleno
beijo — passava, tanto se manifestava a bondade e a fé dos pequeninos e simples
de coração para crer como também se manifestava a maldade da virtude dos seres
movidos a justiça própria, posto que a Graça é tão injusta aos olhos da justiça
própria, que é impossível a alguém tomado pela ideia da auto-virtude conceber
que algo tão “injusto e escandaloso” como a Graça de Deus possa ser justiça.
É
estranho, mas é a justiça própria aquilo que mais gera maldade no coração
humano!
Os
que andam em justiça própria — que é andar na carne — não podem agradar a Deus,
posto que aquilo que Deus chama de bondade e misericórdia eles chamam de
injustiça e auxílio à perversão.
A
justiça própria se escandaliza da maior parte das obras da Graça de Deus!
É
no chão da justiça própria que a inveja também nasce com força descomunal e com
tendência psicológica homicida. Não necessariamente gera assassinos, mas
infalivelmente produz milhões de juízes togados que são sem misericórdia nas
sentenças que proferem.
Digo
isto porque toda inveja carrega uma carga homicida, posto que o invejoso quer o
lugar do outro, o que é do outro, ou até ser o outro — ora, tudo isso implica
em que o outro deixe de ser ou que então mergulhe no vazio: “Raca!”
Quem
diz que crê na Graça mas anda conforme a sua justiça própria ou conforme a fé
nos seus próprios processos de “santidade” pessoal e meritória, não pode estar
na Graça, posto que na Graça a única justiça que decorre como válida diante de
Deus é a que procede da fé, e não do homem e suas virtudes pessoais.
Ora,
todo aquele que ao ver Deus ser gracioso e exagerado em Seu amor para com outro
ser humano, ao invés de se alegrar, se ira e discorda de Deus, e odeia o que
recebeu a dádiva e a ele se compara, e julga Deus injusto por havê-los igualado
— este jamais conheceu a Graça de Deus, posto que a primeira coisa que um ser
humano que encontrou Graça, de fato, descobre, é a sua total condição de
desgraçado em-si-mesmo. “Desventurado homem que sou!” — grita ele. Portanto,
ele jamais verá injustiça na Graça de Deus, pois ele mesmo se considera o maior
beneficiado por tamanha santa injustiça que justifica injustos pela justiça de
um Único justo, de tal modo que o injusto se torna justo — não porque tenha
feito qualquer coisa que assim o tornasse justo, mas apenas porque creu que a
justiça do Único justo pode ser a justiça de nós todos. E ele se alegra que
assim seja; do contrário, ele sabe que estaria perdido. Ele sabe que isso é
loucura para a consciência humana cheia de autojustificação, e sabe que é total
escândalo para aqueles que creem que são justos em-si-mesmos. Ele mesmo, porém,
a ninguém julga, exceto a si mesmo, pois se julgar a alguém, na mesma hora a si
mesmo se condena.
Assim,
somente a Graça limpa o olhar. Mas é também por ela que se fica conhecendo a
mais dissimulada forma de maldade e perversidade, que é aquela que se faz
passar por virtude e justiça própria e que é incapaz de celebrar a Graça de
Deus, pois, para tais pessoas, tudo o mais que não decorre do mérito próprio é
injustiça. E como Deus é o Deus de toda Graça, e como Graça é, essencialmente,
favor imerecido, então, para tais pessoas — mesmo quando falam acerca da
palavra “Graça” —, a Graça de Deus é injustiça contra elas, posto que só
beneficia a quem não merece, isso porque elas mesmas, lá no fundo, ficaram tão
empedradas e insensíveis que creem que Deus lhes deve alguma coisa,
especialmente no caso de Ele querer exagerar em Sua bondade para com algum
vagabundo da Terra.
Mas
Deus lhes pergunta: “Ou são maus os vossos olhos porque Eu sou Bom?”
Cuidado
para que você não odeie Deus, o “dono da vinha”, pela Sua soberania de ser bom
para quem desejar e como bem entender, dando a qualquer um o que é Dele, e não
devendo explicações a ninguém por assim fazer com o que é Dele.
Isso
tornaria você um perverso aos olhos de Deus. Salve-se desse terrível mal. Ame a
bondade de Deus.
Texto de Caio Fábio D'Araújo Filho